Eu poderia ter escrito o título acima com um hífen (-) no lugar do travessão (–). Ficaria bem estiloso e original porque o tema do texto de hoje apareceria representado duas vezes: por extenso e como sinal gráfico. Mas desisti da ideia, talvez movido pelo ódio que eu sinto por esse tracinho maldito que, segundo a Dad Squarisi, é um castigo de Deus. Além disso, gramaticalmente falando, estaria errado pôr um hífen ali. Com o travessão, é outra história, porque ele está com o mesmo papel dos dois-pontos, mas essa função não poderia ser desempenhada pelo hífen, que habita apenas o interior dos vocábulos.
O travessão, assim como os dois-pontos, é um sinal de pontuação, enquanto que o hífen é um sinal de que a gente está prestes a cometer um erro de ortografia.
O hífen já era amaldiçoado muito antes do Acordo Ortográfico entrar em vigor, mas, depois dele, teve aumentada a polêmica em torno de sua tracejante existência. Alega-se que as regras de emprego do hífen eram complicadas, porém tinham uma “certa lógica”; agora, com a reforma ortográfica, elas continuam complicadas e sem lógica alguma.
Por exemplo, por que dois-pontos se escreve com hífen e ponto e vírgula se escreve sem?; por que para-choque tem hífen e paraquedas não tem?; por que baba-de-boi se escreve com hifens e baba de moça não?; por que cor-de-rosa se escreve assim e cor de laranja, assado?; no que a palavra pé-de-meia difere de pé de moleque, para se pôr hifens em uma e não na outra? Eu, particularmente, sei as respostas para todas essas perguntas; meu ódio pelo hífen é por outro motivo.
Antes de revelar o que me entoja nessa praga divina, revelo que o prof. Sérgio Nogueira, no YouTube, acabou ajudando seus alunos a cometer mais pecados ortográficos do que normalmente eles já cometem por conta prórpria. Neste vídeo, sobre as novas regras do Acordo, ele ensina que pé de cabra (a ferramenta) e não me toques (sinônimo de melindres) são palavras compostas escritas com hífen, o que está errado. Por quê? A explicação mais simples e rápida: essas palavras constam como entradas do VOLP (imagem e link acima) e aparecem lá sem hífen. A explicação mais detalhada é a que segue.
Nos compostos (=palavras que se formam de outras) não se emprega o hífen quando eles já aparecem “ligados” por uma palavra da língua (que fará o papel do hífen). Daí a razão de ponto e vírgula, baba de moça (=um tipo de doce), pé de moleque, pé de cabra e não me toques.
No caso das locuções (=grupo de palavras com um sentido específico) não se põe hífen de jeito nenhum*: cor de laranja, passo a passo, dia a dia, lava a jato**, de alto a baixo, pôr do sol, etc. A locução não deverá ser hifenizada mesmo quando ela aparecer na frase se passando por um substantivo: “O passo a passo que ele elaborou está cheio de erros”. Pelas regras antigas, passo a passo seria hifenizado no exemplo acima.
Agora, quanto àquelas incongruências, é o seguinte:
Baba-de-boi, que é um tipo de palmeira, leva hífen porque atende à regra das palavras que designam espécies botânicas e zoológicas, que sempre serão hifenizadas: bem-te-vi (pássaro), bem-me-quer (flor), pé-de-cabra (planta), não-me-toques (flor).
Já pé-de-meia e cor-de-rosa devem ser escritas com hífen pelo mesmo motivo que paraquedas deve ser escrita sem ele: porque a ABL assim convencionou, alegando força da tradição.
Como eu disse, não é por conta de todos esses senões que eu odeio o hífen. Eu odeio o hífen por causa da Base XX do Acordo Ortográfico, que trata da divisão silábica, segundo a qual o hífen da palavra composta deve ser escrito no início da linha seguinte, quando ele coincidir com o hífen da translineação, que é a divisão de uma palavra entre o fim de uma linha e o começo da outra. Por exemplo, se a palavra para-choque não cabe numa linha, ela poderá ser translineada assim: para-, com o hífen da divisão silábica no fim da linha e, iniciando a linha seguinte, -choque, com o hífen do composto. Em paraquedas, a translineação seria feita apenas com o hífen da divisão silábica, no fim da linha, para-, e quedas iniciando a linha de baixo.
Muito simples de se entender, mas um inferno para se executar quando o texto digitado difere da apresentação “impressa” na tela, como é o caso de várias plataformas na internet, como esta na qual estou escrevendo agora.
Ah, Deus!
O Inferno vá lá, mas o Hífen, tenha misericórdia!
________________________
*Segundo a Nota Explicativa que acompanha o Acordo Ortográfico, por estarem consagradas pelo uso, somente as locuções listadas no texto da Base XV devem receber hífen. São elas: água-de-colônia, arco-da-velha, cor-de-rosa, mais-que-perfeito, pé-de-meia, ao deus-dará, à queima-ropa.
**Há também “lava-jato”, mas é substantivo.
Filed under: AO90, Off-topic, Série | Leave a comment »