Palavras ao acaso (5)

palavras ao acaso

Saudade: sentimento mais ou menos melancólico de incompletude, ligado pela memória a situações de privação da presença de alguém ou de algo, de afastamento de um lugar ou de uma coisa, ou à ausência de certas experiências e determinados prazeres já vividos e considerados pela pessoa em causa como um bem desejável. [Dicionário Houaiss]

Palavras ao acaso (4)

palavras ao acaso-fim

 

Sorte: um rótulo que você põe naquilo que te aconteceu de bom exatamente quando as chances de acontecer algo ruim eram bem maiores.

Azar: nome que você dá indiscriminadamente àquilo que te adveio por pura falta de sorte, ou apenas por incompetência.

Piedade: a vontade de interromper o sofrimento de uma outra criatura.

Inveja: pensamento idiota de que o mundo pegou tudo aquilo de que você precisa para ser feliz e deu de presente para as outras pessoas.

Cobiça: é querer algo que você sabe que não merece ter.

Arrependimento: desejo de voltar no tempo e fazer a coisa certa.

Ressentimento: sensação corrosiva provocada pela vergonha de pedir desculpa, ou pelo receio de desculpar.

Ingratidão: a defasagem descomunal que existe entre aquilo que recebemos e o que achávamos que merecíamos.

Flerte: ato sexual fortuito e intermitente realizado em público e a distância. 

Namoro: relação entre duas pessoas que, de comum acordo, só se encontram nos momentos em que estão dispostas, disponíveis e desejosas da companhia do outro, para assim desfrutarem breves momentos de intenso prazer.

Noivado: uma primavera que chega antes do inverno.

Orgulho: é a musculatura da nossa personalidade que precisamos desenvolver de forma que nem nos falte, nem nos sobre. 

 

Fotos em https://mymodernmet.com/baby-dont-cry-jill-greenberg/

Palavras ao acaso (3)

palavras ao acaso deusilusão

 

Milagre: intervenção sobrenatural concedida por um Deus supostamente justo em favor de um pecador que supostamente não a merece.

Talvez: um não educado, ou um sim safadinho.

Suspiro: um desejo que não virou nem ação, nem palavra.

Casamento: processo através do qual as pessoas descobrem que paixão tem data de validade.

Angústia: um endereço com o bairro e o nome da rua, mas sem o número da casa.

Perfume: lembrança que se pode respirar.

Fracasso: o jeito errado de ver algo que você poderia ter feito direito.

Acaso: uma forma tola de pensar que a vida segue um roteiro.

Humor: expressão irreprimível, incontestável e infalsificável de inteligência.

Família: pessoa gigante que foi dividida em várias pessoas de tamanho mais conveniente.

Ansiedade: enorme necessidade de comprar alguma coisa que você não sabe o que é. 

Lágrima: o único modo que seu coração encontrou para poder sangrar sem causar alarme.

Palavras ao acaso (2)

menina chorando

 

Dom: o nome que dão ao resultado do seu esforço e determinação.

Desejo: são os olhos que não têm mãos.

Saudade: vontade de ser feliz de novo.

Ódio: veneno que a gente toma na intenção de matar outra pessoa.

Perdão: é a Paz expressa em palavras.

Esperança: é a contingência do futuro que mais nos beneficia, agrada ou conforta.

Emoção: é o cutucão da batuta do mundo-maestro convidando você a tomar parte no concerto da vida.

Morte: estado no qual as coisas continuam sentindo cada vez menos a sua falta.

Ilusão: é a condição de sermos enganados por nós mesmos, às vezes de brincadeira, às vezes por ignorância, às vezes por distração, às vezes por necessidade. 

Erro: uma frequentemente negligenciada ferramenta de aperfeiçoamento.

Mágoa: é uma ferida que não deixamos cicatrizar por acharmos, inconscientemente, que merecemos a dor que ela nos provoca.

Consciência: é a pessoa que fala por nós quando estamos em silêncio.

 

Palavras ao acaso (1)

definições

 

Ciúme: é o Medo disfarçado de Amor.

Solidão: sensação opressiva de precisar dos outros para se sentir bem.

Religião: é o encontro da fraude com o desejo de ser enganado.

Paixão: é a deliciosa ilusão de voo, durante uma queda, enquanto o chão não chega.

Homossexual: pessoa que aprendeu a se gostar a ponto de se apaixonar por outra quase que completamente igual a ela própria.

Transexual: pessoa que nasceu no corpo errado.

: é o desejo que a gente tem de que as coisas sejam exatamente como a gente gostaria que fossem.

Felicidade: é uma praia linda que some completamente a cada maré alta.

Tristeza: é uma aula do curso que a gente faz para aprender a ser feliz.

Tédio: quando você está com preguiça de viver.

Decepção: a descoberta dolorosa de que as pessoas não vieram ao mundo para agradar a gente.

«Igreja: é o lugar onde as pessoas vão para perdoar Deus». (essa é do livro Casa das Estrelas, de Javier Naranjo)

A falta que a falta faz

A evolução da escrita

Não esqueça de acionar o botão das legendas (CC):

A viagem (3)

 

a viagem (3)

 

Diz-se que, certa vez, um grande cientista do passado estava extremamente infeliz por não poder entender todas as coisas na sua plenitude. Um dia, passeando na praia, ele viu um buraco enorme na areia cheio de água do mar e sorriu de alívio. O cientista finalmente se deu conta de que, como o buraco, sua mente não poderia conter um mar de conhecimento, e era preciso se conformar com o que tinha.

Apesar de ser a maravilha que é, a inteligência humana tem seus limites. Na minha arrogância, eu fiz questão de ignorar essa verdade incrustada na nossa própria existência, e me predispus a entender algo inacessível à compreensão, tolamente esperando que o mar escoasse inteiro para dentro de um buraco na praia. 

O que poderia haver antes do Big Bang? 

Um deus eterno que existe para além do tempo e do espaço? Quem responde que Deus é a origem de tudo só troca um problema por outro ainda maior, porque Deus, por si só, é infinitamente mais inexplicável do que apenas um monte de matéria. 

O Big Bang foi, então, o colapso de um universo-mãe anterior ao nosso, que também vai implodir no futuro e gerar um universo-filho, num ciclo eterno de explosões primordiais? Essa abordagem até dá conta do que teria acontecido e do que poderia acontecer, mas também não responde como essa sanfona cósmica teve início. 

Ou antes do Big Bang não havia nada, nem tempo nem espaço, e tudo foi criado a primeira vez ali? Alguns físicos dizem que “o Nada é instável”, e que partículas subatômicas já foram detectadas pulando para dentro da existência, tão logo eles conseguiam impor uma vacuidade total em uma porção infinitesimal de espaço. Ainda assim: se o Big Bang é consequência do Nada, de onde diabos o Nada veio?

Talvez o universo tenha sempre existido? Ora, sendo o universo eterno, se tormarmos o instante “t” em que a Terra se formou, por exemplo, a eternidade que se estendia antes desse tempo “t” teria tornado impossível que “t” um dia chegasse a existir, para qualquer que fosse o “t” considerado.

Enfim, mesmo nossa excepcional imaginação parece só conseguir cavar apenas quatro mirradas possibilidades para trazer alguma luz ao assunto, mas sem muita lógica qualquer uma delas. 

Eu tive também minha lição de humildade na praia. Usando poderes indizíveis, manipulei as eras, deformei o espaço, destruí galáxias e voei no cosmos à velocidade da luz elevada a ela mesma. Fui até os confins do tempo para um instante antes da origem do universo e o que vi lá, depois de tudo isso, eu poderia ter visto sem esforço algum, sem sequer sair de casa: bastava pôr as mãos em concha sobre os meus olhos fechados dentro do meu quarto escuro.

A viagem (2)

 

singularity

 

Demorei uns 5 bilhões de anos, literalmente, para entender o que estava acontecendo. A nuvem de poeira em que se transformara a Via Láctea não tinha fugido com medo de mim: era o universo que estava encolhendo e, assim, tudo à minha volta se distanciava, me deixando para trás. 

Tendo o intelecto humano conseguido detectar que todos os corpos celestes estavam se afastando uns dos outros, concluiu-se muito sabiamente que deveria ter havido um momento no tempo em que tudo o que existe esteve reunido num único ponto do espaço. Como cada átomo é constituído basicamente de vazio, há mesmo uma lógica em imaginar um lugar no cosmos em que toda a matéria se reuniu sem nenhum espaço entre ela, com seus núcleos tão fortemente espremidos que se condensaram na forma de energia pura. Energia não precisa de espaço, mas nem por isso ela pode ser impedida de criá-lo. A esse momento no passado deram o nome de Singularidade. E eu estava vendo diante de mim cada partícula de matéria correr em direção a ela.

Eu fiquei extasiado olhando aquilo. Quando percebi, estava absolutamente sozinho no vácuo, sem a companhia de um único fóton, um grama que fosse de matéria escura. À minha frente, à medida que o tempo velozmente recuava em éons, pulsares piscavam por toda parte, como enfeites de Natal, do meio de nuvens de gás coloridas; buracos negros vomitavam estrelas; restos de galáxias acendiam um sem-número de novos sóis e formavam nebulosas que rodopiavam loucamente até se transformarem em novas galáxias, para, então, se desmancharem outra vez. E tudo sempre se distanciando mais e mais de mim.

Tive que me apressar para alcançar as últimas galáxias do cosmos (na verdade, as primeiras que surgiram), porque, quando chegasse o momento, eu queria estar bem próximo do colapso supremo para ver o que se escondia atrás do início de tudo. Já na iminência do fim (ou do começo, melhor dizendo), eu desacelerei o tempo e o ajustei para recuar no mesmo ritmo mundano com que se volta um vídeo no YouTube: segundo a segundo.

Numa convergência apocalíptica impossível de ser descrita, por estar muito além da compreensão dos nossos sentidos, toda a poeira cósmica que ainda restava, toda luz, toda radiação, toda matéria escura, cada pedaço do universo colidia violentamente e escorria agora como uma lava fina, a uma velocidade insondável, para um ponto minúsculo quase no infinito envolto na vastidão do Nada. Bastava olhar para saber que era ali a Singularidade. Voei para lá a tempo de acompanhar de perto o último filete de matéria do universo ser engolido por aquele ralo cósmico, achando que teria finalmente a resposta para aquela pergunta primordial sobre de onde veio tudo o que existe. Mas, de repente, não havia mais nada para ver. 

A Singularidade havia se consumado e se consumido. 

Atordoado no meio daquele vazio extremo, retrocedi o tempo infinitamente mais rápido do que jamais havia feito antes, e ainda assim nada aconteceu por novecentos trilhões de anos. Quando finalmente me convenci de que não havia nada por aquele caminho, dei a volta e acelerei na direção oposta, para o futuro, parando a poucos segundos antes do evento da Singularidade que daria origem, dali a mais de treze bilhões de anos, ao mundo de onde eu tinha vindo. Curioso para ver, pelo menos, o nascimento do universo, eu me posicionei a uns poucos anos-luz para o lado e esperei, apreensivo e solenemente emocionado, pelo Big Bang.

Foi quando meus olhos fictícios se esbugalharam de espanto, pois tudo permaneceu exatamente como estava: na mais completa, absoluta, irretocável e desesperadora escuridão.

A viagem (1)

deusilusao

 

Eu decolei na vertical, como o Super-Homem. Enquanto subia numa velocidade inexequível, instintivamente dirigi o olhar para as coisas que se afastavam sob o lugar onde deveriam estar os meus pés: minha casa, minha cidade, o continente, o planeta, o sistema solar. Quando eu parei, menos de meio minuto depois, a Via Láctea inteira estava tão distante que parecia ter o tamanho de um pires. Eu quis dizer alguma coisa, mas, assim como os meus pés, minha boca também não foi junto. Eu era apenas a minha consciência provida de visão, mas sem olhos e sem nada mais de mim mesmo, a não ser o deslumbramento por toda aquela imensidão enfeitada com galáxias, nebulosas, buracos negros, quasares e supernovas.

Apesar de estar maravilhado com a vista, eu não tinha ido ali a passeio: havia um trabalho a ser feito, e eu comecei sem demora. Apenas com a força da minha vontade, eu desloquei o universo para trás no tempo. No começo, bem devagar, por causa da inércia da existência, que se movia para frente, até então, como era de se esperar; mas logo tudo passou a retroceder aceleradamente. Com um misto de orgulho e desespero, eu contemplei a Via Láctea se desfazer: primeiro, os braços espiralados se esgarçaram como que puxados por mãos invisíveis; depois, a grande nuvem cintilante do centro também foi sugada para o espaço vazio, até todos os sóis se apagarem e tudo aquilo virar uma nuvem de poeira escura que rapidamente se afastou, talvez com medo desse novo deus destruidor de mundos em que eu havia me transformado.

No instante seguinte, eu me vi envolvido numa tristeza de tal magnitude que cheguei a ter pena de mim mesmo. Eu era o único ser humano de todo o universo, e já não havia nada mais nele que sequer pudesse lembrar minimamente que um dia eu havia existido: até a galáxia que continha o sistema solar no qual orbitava o planeta que abrigava a minha espécie havia desaparecido. Era como se eu tivesse morrido, e o meu inferno tivesse se revelado naquela infinitude de distâncias e solidão.  

Ali, desolado e arrependido, flutuando estático no vazio próximo do zero absoluto, onde não havia o em cima nem o embaixo, nem o ontem nem o amanhã; cercado por bilhões de pontos brilhantes que eu sabia que não eram estrelas, mas galáxias iguais à que tinha acabado de desintegrar, eu me dei conta de que ficar inerte seria como a morte dentro da morte. Entretanto, me mover nunca fez parte dos planos: em vez disso, eu iria mover o universo inteiro para trás no tempo, a uma velocidade inconcebível, até chegar à origem de tudo e testemunhar com os olhos da minha consciência cósmica o que existia antes do Big Bang.

HOUAISS gratuito por 15 dias

 

Dicionário Houaiss e Dicionário Aurélio.jpg

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Comprei o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa em 2001, no dia do seu lançamento. Sob qualquer critério de avaliação, é o melhor dicionário que há no nosso idioma, elaborado à quase perfeição, com tanto zelo a ponto de ter sido impresso numa fonte especialmente criada para ele: a fonte Houaiss, na versão em papel.

Quando veio à tona essa falcatrua do Acordo Ortográfico, em vez de comprar, em 2009, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa com a nova ortografia, optei por adquirir a 5ª edição do Vocabulário Ortográfico (VOLP) da Academia Brasileira de Letras, lançado naquele mesmo ano. Como eu já havia aprendido a usar todas as novas regras ortográficas desde o começo do ano de 2009, achei melhor continuar com o meu Houaiss de 2001, até porque o Houaiss de 2009, apesar de ter o mesmo nome do dicionário de 2001, trazia cerca de 82 mil verbetes a menos (a metade de verbetes de um Aurélio). Por conta disso, o Houaiss de 2001 passou a se chamar Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.

Com o passar dos anos, aguardei impacientemente uma nova edição do Grande Houaiss, mas ela nunca chegou, uma vez que seria um prejuízo enorme lançar um dicionário desse porte e, mais dia menos dia, ter-se as regras ortográficas modificadas de novo. Sim, porque a se levar a sério os rumores, é o que vai acabar acontecendo. Nestes termos, a editora Objetiva achou melhor disponibilizar a 2ª edição do Grande Houaiss (revista, ampliada e na nova ortografia) apenas na versão eletrônica, na nuvem, com acesso às suas mais de 232 mil entradas somente on-line. Até aí, tudo bem. Antes isso do que nada.

Mas como todo paraíso está conectado a um inferno, o preço pela assinatura do dicionário é, para os meus bolsos, exorbitante. Setenta e cinco reais mensais.

O Grande H Corportivo é acessado através de login e senha disponibilizados enquanto os pagamentos estão sendo feitos. O valor de R$ 75 dá direito a três logins; se você juntar um grupo de 3 amigos, cada um pode entrar com uma cota de R$ 25. Para baixar o valor da assinatura por usuário, só aumentando o grupo: 10 logins custam R$ 150, o que daria R$ 15 para cada um dos dez participantes, e assim por diante.    

Caso você tenha interesse em testar o Grande Dicionário Houaiss versão eletrônica, ainda sem prazo para a versão em papel, precisará seguir os seguintes passos:

1º) Clique na imagem que abre esse texto (ou no link abaixo) para ser direcionado à página de cadastro; lá você precisará fornecer nome, CPF, endereço residencial, telefone e e-mail, através do qual receberá imediatamente um login e senha para acesso gratuito ao dicionário por 15 dias.

http://www.houaiss.net/corporativo/wizard.php

2º)  Baixe o aplicativo Grande H Corporativo (iOs ou Android);

3º) Entre no aplicativo (tablet ou celular) com o login e senha fornecidos no e-mail que você recebeu (para acesso a partir do seu computador, a página é essa: http://www.iah.com.br/sp/hcorporativo.php).

E divirta-se com o melhor dicionário do mundo.

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assinatura esotérica

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Nesse vídeo de um canal esotérico do YouTube, um “mestre” ensina como ter uma assinatura de sucesso. Eu fui lá ver, que de bobo eu não tenho nada, mas já me preparando para o pior, porque eu sei o que a palavra esotérico significa: é uma “ciência” (entre aspas, porque eu tenho vergonha na cara) fundamentada em conhecimentos de ordem sobrenatural.

O tal do mestre explica, por exemplo, que não se deve terminar a assinatura numa linha descendente, porque assinaturas que terminam assim dificultam a obtenção do sucesso. Isso me soou muito parecido com um conselho que minha avó me dava para nunca deixar viradas as minhas chinelas havaianas, porque uma chinela virada causa a morte de um dos nossos pais.

Ora bem! Se tem uma coisa que parece não importar muito aos esotéricos é a tal da fonte: de onde o mestre tirou aquela informação de que terminar uma assinatura com uma linha descendente vai atrapalhar a vida de alguém? Eles não se importam, como eu não me importei em perguntar à minha avó quantos pais já haviam morrido por conta daquele descuido dos filhos com suas sandálias de dedo.

O fato é que eu cresci e, por algum motivo, minha mente não consegue visualizar nenhuma mágica no mundo. Tudo tem sempre uma explicação lógica e racional ou, pelo menos, uma explicação lógica e racional para não ter uma explicação ainda. Para muita gente eu sei que deve parecer chato isso, mas eu não acho. Eu me sinto muito à vontade vivendo numa dimensão em que as relações de causa e efeito são sempre bem claras: se eu gastar mais do que ganho, vou ficar endividado; se comer bastante pizza e passar muito tempo vendo Netflix, eu vou ficar gordo. Por isso que, quando alguém me diz que meu sucesso depende do ângulo da linha com que eu termino minha assinatura, a coisa mais natural do mundo para mim é querer saber por quê.

O que geralmente ocorre, nesses casos, é que a resposta nunca é satisfatória. Quando muito, só gera mais perguntas que, ao fim e ao cabo, vão revelar o que eu já sei: toda afirmação “esotérica” é baseada apenas no alegado conhecimento oriundo de uma dimensão mágica, portanto, impossível de ser explicada. E eu diria também impossível de ser confirmada.

Deus significa outra coisa

jesus na cruz

Deus é uma invenção da mente humana. Um amuleto. Uma muleta.

Quando um cristão diz “Vá com Deus”, ele está expressando sua vontade de que o criador de todo o universo acompanhe a pessoa da qual ele se despede, visto que, sendo todo-poderoso, Deus supostamente daria um excelente guarda-costas. Mas, como Deus não existe, o crente está dizendo apenas isso: “Espero que você chegue ao seu destino sem que nada de mal lhe aconteça”.

Quando diz “Se Deus quiser”, o cristão aparentemente está sugerindo que tudo acontece de acordo com as vontades do ser onipotente que detém o controle sobre todas as coisas, e que, assim sendo, ele está esperando que algo que ele deseja que aconteça também faça parte dos planos divinos. Mas, como Deus não existe, você pode substituir “Se Deus quiser” por “tomara que”, que dá no mesmo.

Quando exclama “Deus me livre!”, o crente poderia fazer alguém supor que ele espera que a divindade na qual ele foi ensinado a acreditar irá intervir em seu favor, evitando que algum mal o atinja. Mas, como Deus não existe, ele está apenas manifestando sua predisposição de sequer imaginar-se vítima desse mal.

Quando diz “Deus te abençoe”, o crente tenta se sentir suficientemente íntimo de seu “pai celeste” para pedir favores para uma outra pessoa, de forma a que aconteça um monte de coisas boas na vida daquela pessoa, mesmo sem que ela se esforce para tal, ou mesmo que não mereça, do ponto de vista do próprio Deus. Mas, como Deus não existe, ele só está dizendo “Espero que dê tudo certo pra você”.

Quando diz “Deus escreve certo por linhas tortas”, ele está querendo dar a entender que, mesmo quando acontece algo de terrível, maléfico, injusto, etc., aquilo faz parte dos planos de sua divindade cósmica particular, e que essa divindade quer mesmo que aquilo ocorra para desdobrar tais eventos em algo de bom, positivo, benéfico, etc. Mas, como Deus não existe, ele está dizendo: “Uma vez que isso já é fato consumado, agora é fazer por onde superar o ocorrido e continuar tocando a vida”.   

Quando ele diz “Graças a Deus!”, o crente está supostamente afirmando que algo de bom lhe aconteceu devido à intervenção de um protetor onipresente que sempre ouve suas preces e o protege de perigos. Mas, como Deus não existe, o que ele quer dizer é, simplesmente: “Ainda bem!”.

Quando o crente diz “Deus te perdoe”, teoricamente ele está manifestando seu desejo de que o bondoso criador do universo não cumpra a ameaça de mandar torturar você por toda a eternidade, no caso de você se recusar a gostar dele. Na verdade, o crente quer mesmo que você se dane, mas, como Deus não existe, isso não faz a menor diferença. 


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Hino do dízimo

 

Indicação do leitor Marcello Portari

Hífen maldito, mal dito, mal-dito

houaiss

 

“Pé de moleque”. Quantas palavras você lê aí?

Resposta: uma, duas ou três, dependendo da acepção que você der ao termo “palavra”. Apesar do ódio que sinto por ele, preciso admitir que o hífen descomplica tudo em que se soca no meio. Em “pé-de-moleque” só é possível contar uma única palavra, não importa a definição de “palavra” que você esteja usando.

Mas, então: é pé de moleque ou pé-de-moleque? Aí depende de que parte do Acordo Ortográfico você escolher levar a sério.

O Decreto n˚ 6.583 de 29 de setembro de 2008 promulgou o texto do Acordo entre os países de língua portuguesa para unificação da ortografia, elaborado em 1990. Esse texto constitui-se de dois anexos: o primeiro contém as chamadas Bases; o segundo, uma Nota Explicativa. Lendo o item 1 da Base XV, qualquer um entende que não se deve empregar o hífen em palavras* compostas que contenham forma de ligação, como é o caso de de moleque, que tem aquele de ligando a moleque, já fazendo o papel do hífen. Entretanto, lendo o item 6.2 da Nota Explicativa, que trata justamente da Base XV, qualquer um também vai aprender que as regras de emprego do hífen nos compostos continua sendo a mesma do texto do Acordo Ortográfico de 1945, que exige o emprego do hífen para ligar duas ou mais palavras que, mantendo a própria ortografia e acentuação, perdem o significado para formar um novo vocábulo na língua, como pé-de-moleque.

Os brasileiros escolheram seguir a Base (pé de moleque); os portugueses, a Nota Explicativa  (pé-de-moleque). Resultado: o número de palavras escritas de forma diferente no português brasileiro e no de Portugal é maior hoje do que antes do Acordo que pretendia que a gente escrevesse do mesmo jeito.

 

NOTA: não estou aplicando a regra da translineação porque o editor de texto não permite.

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* Palavras compostas que designam espécies botânicas ou zoológicas são sempre escritas com hífen: pé-de-cabra (planta), pé-de-galinha (planta), bem-te-vi (pássaro).

Eles têm olhos, mas não veem

mariadenazarc3a9

Jacyra foi chamada na senzala pela própria mãe: o senhor do engenho queria vê-la na casa-grande. A mãe não comentou nada, e nem precisava. Todos ali sabiam que a sinhá havia ido para a missa em Curralzinho, junto com os filhos e os agregados. O Senhor estava só na casa-grande.

Jacyra, apesar dos seus catorze anos, já possuía plena consciência tanto de sua condição de escrava quanto da lascívia dos homens. Mais que isso, ela já tivera amostras sem conta da violência com que seu Senhor tratava aqueles que lhe desagradavam minimamente. Sabia como ele era mesquinho, irascível, volúvel, injusto, maléfico. Melhor mesmo não contrariá-lo; talvez assim escapasse ilesa.

Vendo a apreensão conturbar o lindo rosto da filha, a mãe tentou reconfortá-la: «Alegra-te: o Senhor se agradou de ti» (Lc 1;28), mas não surtiu efeito. Jacyra andou até a casa-grande com os passos pesados de uma condenada. Poderia resistir aos caprichos de seu Senhor, mas não poderia resistir ao tronco! E o terror da lembrança de tantos corpos dilacerados pelo chicote deu-lhe ao menos forças para, diante de seu Senhor, pronunciar estas palavras que poderiam parecer de consentimento, mas que ouvidos mais atentos teriam percebido tratar-se de puro desespero:

«Eis aqui a tua serva.» (Lc 1;38)

amor à morte

Funeral.jpg

O cristão deveria encarar a morte, mal comparando, como o procedimento de check in para férias no exterior: algo que se enfrenta com bom humor, paciência e excitamento apesar da aporrinhação e desconforto envolvidos. Mas não. Embora exaltando e anunciando uma vida perfeita e maravilhosa numa dimensão mágica cujo portal é a própria sepultura, ele se agarra a este mundo como eu me agarro, e teme tanto a morte quanto eu mesmo temo.

Eu, sim, tenho razões para querer adiar a todo custo o meu aniquilamento, porque sou um ser mundano, finito e desalmado. As minhas razões, entretanto, jamais poderiam ser reivindicadas por criaturas que seriam premiadas com uma outra vida muito melhor do que essa num outro mundo muito melhor do que esse. Não há lógica em imaginar um cristão que não anseia pela própria morte. Eu, se acreditasse no que os cristãos acreditam, iria passar meus dias esperando a hora de deixar logo essa existência terrena tão desprezada por Jesus Cristo: «Não ameis o mundo, nem o que no mundo há» (1 João; cap. 2, v.15).

Richard Dawkins comentou várias vezes que, a se levar a sério as alegações em que se sustenta a fé religiosa, seria fácil distinguir, num velório, quem é ateu e quem é cristão, pois estes últimos teriam motivos de sobra para se alegrar com a partida de um ente querido. Apenas aos ateus seriam facultados a dor e o sofrimento que a contemplação da morte de um semelhante lhes traria da certeza de seu próprio fim.   

Hífen — um castigo divino (4)

HyphenOrNot 

Ter adquirido o conhecimento de todas as regras do hífen foi o mesmo que ter mordido de novo aquele fruto proibido. Fui expulso do paraíso da ignorância, onde vivia feliz, para ser lançado no inferno da confusão e da dúvida. Hoje eu sou punido pela simples condição de saber. Que tipo de pecador mereceria tamanho castigo? Que tipo de deus se prestaria a aplicá-lo? 

A regra diz que o “h” e o hífen devem ser mantidos nos compostos, para que não se perca o traço etimológico: geo-história, super-habilidadeanti-higiênico. Mas diz também que o hífen desaparece quando o segundo elemento tiver perdido o “h” inicial: inábil, desumano, coabitar, reaver. Como que eu vou saber se o segundo elemento perdeu aquela letra? Só vendo no dicionário; donde se conclui que conhecer a regra é completamente inútil.

Se eu quiser escrever que fulano herdou algo junto com sicrano, eu tenho que pôr “co” e “herdeiro” numa palavra só. Segundo o VOLP, a palavra resultante é coerdeiro; segundo o Houaiss, tanto faz coerdeiro como co-herdeiro.    

Se o prefixo terminar com a mesma vogal que inicia o segundo elemento, o hífen é obrigatório: anti-inflama-tóriomicro-ondas, contra-ataque. Mas nem sempre, e não dá para dizer por quê: reescrever, reeleição, reencarnação, cooperar, coordenar.

No caso do prefixo “sub-”, às vezes o hífen entra para ajudar na pronúncia, às vezes ninguém se importa com isso. Então, como não dá para aplicar a regra da duplicação das consoantes em, por exemplo, sub-raça e sub-reitor (“subrraça”, “subrreitor”), porque iria ficar esquisito demais, escreve-se com o hífen para não se ler “subraça” /subráça/ e “subreitor” /-brei-/. Estranha-mente, entretanto, não se põe hífen em sublocar e sublinhar (o Houaiss ensina que a pronúncia correta é /sub-locar/, para sublocar; já sublinhar tanto se pronuncia /sub-li/ como /su-bli/). 

Com os prefixos tônicos “pós-”, “pré-” e “pró-” deve-se usar o hífen. Mas, diferentemente de quem escreveu essa regra, eu não consigo enxergar se o prefixo tem ou não acento quando falo ou penso numa palavra. Por conta disso, vou sempre ter que recorrer ao dicionário para descobrir, por exemplo, que “pré-existência”, “pré- -estabelecer”, “pós-tônico” e “pró-ativo” se escrevem assim: preexistência, preestabelecer e pós-tônico. Já “pró-ativo” pode ser dos dois jeitos, com e sem hífen: pró-ativo/proativo

E para piorar ainda mais as coisas, ninguém mais se entende quanto ao que é locução ou palavra composta. O dicionário Houaiss registra dia a dia, maria vai com as outras e pé de cabra (a ferramenta) como sendo locuções, respectivamente nas entradas “dia”, “maria” e “pé”. No VOLP, isso tudo aparece como verbetes, ou seja, para a Academia Brasileira de Letras, esses grupos de palavras são substantivos, assim mesmo sem hifens.

No texto do Acordo Ortográfico de 1990, incluindo as notas explicativas, foram as Bases legislando sobre o emprego do hífen que mais mereceram meu estudo e atenção, relidas vezes sem conta. O fruto desse conhecimento não serviu para mais nada além de me condenar à mesma incerteza dos ignorantes*. Hoje, tudo que sei sobre o hífen me obriga a considerá-lo mesmo como um castigo divino.

Deus, rejeitado e desprezado por mim; inconformado com o prazer e com a paz que me dá esse simples ato de escrever; não sabendo como me atingir, achou ele um meio de imiscuir-se entre mim e o teclado. E não podendo me condenar ao Inferno, ele inventou esse tracinho “mal-dito” para me torturar com o medo das exceções, o sofrimento dos caprichos de uso e a agonia da translineação.

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* Aqueles que ignoram as regras que eu li.

Hífen — um castigo divino (3)

AO90

«Aprenda a regra e decore as exceções» foi o primeiro bom conselho que eu lembro ter recebido na vida. Ele veio de um professor de português na quinta série. Isso funcionou perfeitamente bem para mim até 2009, quando li pela primeira vez a regra 1) da Base XV do Acordo Ortográfico de 1990, que trata do emprego do hífen em compostos, locuções e encadeamentos vocabulares.

A regra lá diz que eu devo escrever com hífen a palavra composta formada de outras palavras independentes na língua, como guarda-chuva. Ora, “guarda” (flexão do verbo guardar) e “chuva” são duas palavras que se juntaram  para   formar   um   novo  vocábulo: guarda- -chuva; daí o hífen. Pelo mesmo motivo se escreve, por exemplo, para-raios: “para” (flexão do verbo parar) e “raios” (plural de raio).

Deixa ver se aprendi: se eu tiver duas palavras “soltas” que se juntam para formar uma outra coisa, eu taco hífen nela! Manda-chuva. Gira-sol. Para-quedas. Que simples! Adoro quando as coisas têm lógica.

Acontece que, sendo um simples tracinho, ninguém pensou que ele fosse precisar de lógica. Mandachuva, girassol e paraquedas são escritas assim, sem hífen. Jesus, Maria, José! Que disparate é esse? Ah!, mas é claro: são exceções à regra geral. Nossa!, que susto! Meu professor me alertou mesmo para esse tipo de coisa; é preciso decorar as exceções. No caso da Base XV, sobre o hífen nos compostos, as exceções são: girassol, madressilva, mandachuva, pontapé, paraquedas, paraquedistas, etc.  

Etc.??! Tá louco?

A partir de para-raios e paraquedas, como diabos eu escrevo paralama/para-lama? Só mesmo recorrendo ao VOLP*: para-lama. Mas, ora! Sem uma lista completa das exceções, eu vou ter sempre que recorrer ao dicionário. De que adiantou saber a regra 1) da Base XV se precisei consultar no VOLP como escrever para- -lama?

A pessoa que fez essa regra, quando terminou de botar o ponto do etc., deveria ter usado o backspace do teclado e apagado todo o texto até chegar no número 1), e recomeçado assim: 

  1) Para palavras compostas, consulte nosso Vocabulário Ortográfico.

Simples: sem regras e sem exceções; prático: porque é assim mesmo que tem que ser; e útil, porque deixa o leitor com mais tempo para tentar entender as loucuras da regra número 6).

________________________

*VOLP: Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (ABL, 5ª ed., 2009)

Hífen — um castigo divino (2)

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O Acordo Ortográfico de 1990 foi implementado com o objetivo de unificar a língua portuguesa escrita. Segundo seu próprio texto, já haviam tentado isso em 1931, 1943, 1945, 1971, 1973, 1975 e 1986. Depois de todos esses fracassos, alguém achou, por algum motivo, que em 1990 o negócio iria dar certo! Não deu.

Aliás, tomando por base estudos de linguistas portugueses, opositores ao Acordo argumentam que o número de palavras que são escritas de forma diferente no português brasileiro e no português europeu aumentou depois da reforma ortográfica. Agora chupa essa manga! A propósito, chupa essa manga é uma expressão idiomática escrita do mesmo jeito na nova ortografia e na antiga. Mas não é isso que garante que um moçambicano, por exemplo, vá entender o que eu escrevi. É provável até que muitos brasileiros não entendam, porque certos aspectos do idioma podem ficar restritos a pequenas regiões, a uma determinada faixa etária, ou mesmo a um grupo específico de falantes.

A comunicação escrita vai muito além da ortografia. Não entendo como ninguém na Academia Brasileira de Letras ou na Academia das Ciências de Lisboa se deu conta disso. E olha que eles tiveram quase todo o século 20 para pensar no assunto! Brasil e Portugal são culturalmente diferentes, e a maneira como se escreve é uma das manifestações da cultura. O dano à minha identidade cultural com a perda do acento agudo e do trema devido a uma «idéia inconseqüente» pode ser comparado a um arranhão em face da amputação sofrida pela língua-mãe, que perdeu suas consoantes mudas e encontra-se agora nesta «aflicta objecção». 

Eu já escrevo na nova ortografia desde 2009 e, para ser sincero, nada na reforma ortográfica me incomoda… exceto essa maldição de Deus: o hífen.

Antes de voltar a esse tema, porém, divulgo abaixo o vídeo de uma explicação bem convincente do Sr. Sérgio de Carvalho Pachá, demitido de sua função de lexicógrafo-chefe da ABL por não ter concordado com o real motivo por trás do Acordo Ortográfico de 1990.

 

Breviário de Decomposição


breviário de decomposição

Senhor,

Dá-me a faculdade de jamais rezar; poupa-me a insanidade de toda adoração; afasta de mim essa tentação de amor que me entregaria para sempre a Ti.

Que o vazio se estenda entre meu coração e o céu!

Não desejo ver meus desertos povoados com Tua presença, minhas noites tiranizadas por Tua luz, minhas sibérias fundidas sob Teu sol.

Mais solitário do que Tu, quero minhas mãos puras, ao contrário das Tuas que sujaram-se para sempre ao modelar a terra e ao misturar-se nos assuntos do mundo.

Só peço à Tua estúpida onipotência respeito para minha solidão e meus tormentos. Não tenho nada a fazer com Tuas palavras.

Concede-me o milagre recolhido antes do primeiro instante, a paz que Tu não pudeste tolerar e que Te incitou a abrir uma brecha no Nada para inaugurar esta feira dos tempos, e para condenar-me assim ao universo, à humilhação e à vergonha de existir.

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(Breviário de Decomposição, de Emile M. Cioran. Livro completo escaneado «Aqui»)

 

Deusilusão no Twitter

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twitter

Sinal de Deus

 

15Um semáforo de pedestres aqui perto parou de funcionar há semanas e ninguém notou. Isso porque as pessoas continuam fazendo o que sempre fizeram desde quando o equipamento foi instalado: elas andam na calçada até chegar nele, apertam o botão e, em menos de um minuto, decidem cruzar a avenida por sua própria conta e risco, deixando, logo após, uma fila de carros se formar ante uma faixa de pedestres completamente vazia.

Agora, com o aparelho pifado, mesmo que aquele apertar de botão tenha se tornado apenas um ritual inútil, os pedestres continuam se reunindo bovinamente perto do semáforo, para cruzar a avenida do mesmo jeito: sem esperar pela intervenção de uma luz vermelha divina que interrompa o tráfego em seu nome.

Por que ninguém percebeu que o semáforo parou de funcionar? Porque as pessoas de fato nunca dependeram dele para atravessar uma avenida de pouco movimento. O sinal inoperante virou um tipo de religião; ele tem agora apenas a função de juntar seres humanos em volta de uma ilusão comum: a ilusão de que algo maior do que eles intercede em seu favor sempre que solicitado. Mas, na verdade, assim como também fazem com seu próprio Deus, cada um segue sua vida e seu caminho como se o semáforo de pedestres não existisse.

Hífen — um castigo divino

VOLP

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Eu poderia ter escrito o título acima com um hífen (-) no lugar do travessão (–). Ficaria bem estiloso e original porque o tema do texto de hoje apareceria representado duas vezes: por extenso e como sinal gráfico. Mas desisti da ideia, talvez movido pelo ódio que eu sinto por esse tracinho maldito que, segundo a Dad Squarisi, é um castigo de Deus. Além disso, gramaticalmente falando, estaria errado pôr um hífen ali. Com o travessão, é outra história, porque ele está com o mesmo papel dos dois-pontos, mas essa função não poderia ser desempenhada pelo hífen, que habita apenas o interior dos vocábulos.

O travessão, assim como os dois-pontos, é um sinal de pontuação, enquanto que o hífen é um sinal de que a gente está prestes a cometer um erro de ortografia.

O hífen já era amaldiçoado muito antes do Acordo Ortográfico entrar em vigor, mas, depois dele, teve aumentada a polêmica em torno de sua tracejante existência. Alega-se que as regras de emprego do hífen eram complicadas, porém tinham uma “certa lógica”; agora, com a reforma ortográfica, elas continuam complicadas e sem lógica alguma.  

Por exemplo, por que dois-pontos se escreve com hífen e ponto e vírgula se escreve sem?; por que para-choque tem hífen e paraquedas não tem?; por que baba-de-boi se escreve com hifens e baba de moça não?; por que cor-de-rosa se escreve assim e cor de laranja, assado?; no que a palavra pé-de-meia difere de pé de moleque, para se pôr hifens em uma e não na outra? Eu, particularmente, sei as respostas para todas essas perguntas; meu ódio pelo hífen é por outro motivo. 

Antes de revelar o que me entoja nessa praga divina, revelo que o prof. Sérgio Nogueira, no YouTube, acabou ajudando seus alunos a cometer mais pecados ortográficos do que normalmente eles já cometem por conta prórpria. Neste vídeo, sobre as novas regras do Acordo, ele ensina que pé de cabra (a ferramenta) e não me toques (sinônimo de melindres) são palavras compostas escritas com hífen, o que está errado. Por quê? A explicação mais simples e rápida: essas palavras constam como entradas do VOLP (imagem e link acima) e aparecem lá sem hífen. A explicação mais detalhada é a que segue.

Nos compostos (=palavras que se formam de outras) não se emprega o hífen quando eles já aparecem “ligados” por uma palavra da língua (que fará o papel do hífen). Daí a razão de ponto e vírgula, baba de moça (=um tipo de doce), de moleque, de cabra e não me toques.

No caso das locuções (=grupo de palavras com um sentido específico) não se põe hífen de jeito nenhum*: cor de laranja, passo a passo, dia a dia, lava a jato**, de alto a baixo, pôr do sol, etc. A locução não deverá ser hifenizada mesmo quando ela aparecer na frase se passando por um substantivo: “O passo a passo que ele elaborou está cheio de erros”. Pelas regras antigas, passo a passo seria hifenizado no exemplo acima. 

Agora, quanto àquelas incongruências, é o seguinte:

Baba-de-boi, que é um tipo de palmeira, leva hífen porque atende à regra das palavras que designam espécies botânicas e zoológicas, que sempre serão hifenizadas: bem-te-vi (pássaro), bem-me-quer (flor), pé-de-cabra (planta), não-me-toques (flor).

pé-de-meia e cor-de-rosa devem ser escritas com hífen pelo mesmo motivo que paraquedas deve ser escrita sem ele: porque a ABL assim convencionou, alegando força da tradição. 

Como eu disse, não é por conta de todos esses senões que eu odeio o hífen. Eu odeio o hífen por causa da Base XX do Acordo Ortográfico, que trata da divisão silábica, segundo a qual o hífen da palavra composta deve ser escrito no início da linha seguinte, quando ele coincidir com o hífen da translineação, que é a divisão de uma palavra entre o fim de uma linha e o começo da outra. Por exemplo, se a palavra para-choque não cabe numa linha, ela poderá ser translineada assim: para-, com o hífen da divisão silábica no fim da linha e, iniciando a linha seguinte, -choque, com o hífen do composto. Em paraquedas, a translineação seria feita apenas com o hífen da divisão silábica, no fim da linha, para-, e quedas iniciando a linha de baixo.

Muito simples de se entender, mas um inferno para se executar quando o texto digitado difere da apresentação “impressa” na tela, como é o caso de várias plataformas na internet, como esta na qual estou escrevendo agora.

Ah, Deus!

O Inferno vá lá, mas o Hífen, tenha misericórdia!

________________________

*Segundo a Nota Explicativa que acompanha o Acordo Ortográfico, por estarem consagradas pelo uso, somente as locuções listadas no texto da Base XV devem receber hífen. São elas: água-de-colônia, arco-da-velha, cor-de-rosa, mais-que-perfeito, pé-de-meia, ao deus-dará, à queima-ropa.

**Há também “lava-jato”, mas é substantivo.

 

Quando o assunto é a Bíblia…

Quando o assunto é a Bíblia, o crente sabe quando um versículo tem que ser tomado ao pé da letra e quando precisa ser reinterpretado; sabe quando uma lei  divina ainda é válida para os nossos dias ou se só serviu para a época em que foi escrita; sabe quando uma passagem contém a exata palavra de Deus e quando foi indevidamente misturada às idiossincrasias do autor terreno que a escreveu, ou às peculiaridades e influências do seu próprio tempo; sabe quando ‘a Palavra’ está mesmo escrita no texto e quando está escondida nas entrelinhas; sabe diferenciar um relato ‘real’ de um ‘alegórico’; e sabe até quando Deus mandou escrever uma coisa e quis dizer outra.

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A versão original do Pecado Original

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Capítulo 1

DEUS: Bem-vindo ao Paraíso, Adão! Não te assustes, ó pá!! Eu sou o teu Criador! Fui eu que te fiz; não me tenhas medo. Só vim saber o que tu achaste da minha Obra.

ADÃO: Eu… Eu… não sei o que vos diga.

DEUS: Como assim “não sei o que vos diga”? Pois eu criei um universo inteiro para ti, e não recebo elogio algum em troca? Estou a passar-me!

ADÃO: Mas eu abri os olhos pela primeira vez ainda esta manhã; nem deu tempo de perceber no que estou metido…

DEUS: Pois não te faças de rogado. Eu sou Deus. Sou todo-poderoso, onipresente, onisciente, eterno, perfeito e imutável. Sou o teu Senhor e Criador. Que isto te baste! Agora dá uma boa olhada em volta e vê que beleza que ficou isto aqui! Fiz tudo isto justamente para tu poderes me encher de elogios, e ainda estou a esperar por um, ao que parece.

ADÃO: Deixai-me ver… Eu diria que realmente…  é um lugar muito… Ei!, o que são aquelas coisas?

DEUS: Hein?! Onde? Ah, aquilo são as nuvens. Elas são água em forma de vapor. A função delas é condensar e cair na forma de chuva para prover o mundo com água líquida, que é o que sustenta toda a vida que eu criei. Depois de vir-se à terra, a água evapora e volta a ser nuvem. Eu projetei tudo nos mínimos detalhes, como podes ver, e cada coisa tem uma função específica. Sendo perfeito, eu teria mesmo que criar um mundo perfeito, pois não? Mas tu dizias…

ADÃO: E o que há para além das nuvens?

DEUS: Além das nuvens? Ora, essa é boa! Além das nuvens há de haver o cosmos, ora bolas!; um sem-fim de galáxias, quasares, asteroides, matéria escura, buracos negros… Uma infinidade de coisas.

ADÃO: Para que serve um buraco negro?

DEUS: Tu tens muita lata para ficares aí à sombra da bananeira a perguntar-me tamanhas estultices.

ADÃO: Mas vós dissestes que cada coisa tinha uma função…

DEUS: O que eu disse foi para tu olhares “em volta” e não “para cima”, entendeste? Vê aí e diz-me logo o que achaste.

ADÃO: Bem, vejamos… O que é aquela coisa grandona ali ao lado daquela coisinha de pernas finas?

DEUS: Ora pois, aquilo são animais, e tu precisarás dar nome a eles.

ADÃO: Ah… Então o grandão com a juba eu vou chamar de leão. A coisinha de pernas finas que está a saltitar alegremente em volta dele vai chamar-se gazela. Eles parecem tão amigos, não é?

DEUS: De facto! Criei todos os seres em perfeita harmonia, mas deixei para ti a muita grande honra de dar o nome a todos os animais da terra.

ADÃO: Opa! Mas eu pensava que seriam apenas aqueles dois. Reparastes na infinidade de bichos que há por aí? E só de insetos há de haver mais de dois milhões de espécies! Como arranjarei eu tempo para nomear tudo?

DEUS: Tempo não é problema. Tu vais viver para sempre, Adão. Agora também não é por isto que eu posso ficar a esperar para sempre tu elogiares o meu trabalho! Foi para isto que eu te criei. E não fica a mexer nisso aí, tás a ver?!

ADÃO: Qual a função disto, afinal? Está a aumentar de tamanho…

DEUS: Para, eu já disse! Estátua!

ADÃO: Parei! Pronto! Só tencionava saber para que isto haveria de servir. E quanto ao buraco negro? Esquecestes de reponder…

DEUS: Quem anda esquecido aqui és tu, percebes? E o elogio que ainda não me fizeste?

ADÃO: Pronto. Eu achei o lugar muito aprazível. Fostes por demais caprichoso, está-se a ver.

DEUS: Ah, Obrigado! São muitos anos a virar frangos.

ADÃO: Mas há uma coisa…

DEUS: Uma coisa?

ADÃO: Na verdade mesmo são duas… Quer dizer… Três, ao todo…

DEUS: Olha, se tu quiseres manter a tua saúde em perfeito estado, eu acho bom tu desembuchares duma vez…

ADÃO: É que isto está a ser-me de grande incómodo. Esta manhã, eu sentei na grama… e a grama é bem viçosa, percebestes? Bem viçosa e… deveras pontuda. E eu achei bem desagradável sentar na grama, porque…

DEUS: Já entendi! Está anotado; vejo isto depois. Próxima!

ADÃO: Pois bem. É sobre isto de dar nome a bichos e estar a fazer-te elogios… Eu não sei direito quem sois vós, nem quem sou eu, nem o que estou a fazer aqui. Aliás, nem mesmo sei onde é este “aqui”. Isto tudo está- -me a enfastiar.

DEUS: Próxima!

ADÃO: É que eu só tenho visto estes… estes animais o dia todo… E agora aparecestes vós; mas não há ninguém igual a mim e isto me incomoda também. Eu achava que vós poderíeis…

DEUS: Vira aqui um pouquinho, Adão. Coisa pouca.

ADÃO: Virar? Assim? Então… Eu achava que vós poderíAaaaaai!! O que vem a ser isto?!

DEUS: Isto chama-se dor. Não era para tu sentires dor, mas, já que pediste companhia, eu vou fazer uma mulher de uma de tuas costelas.

ADÃO: Isto doeu-me à vera! Mas por que vós não poderíeis fazer uma mulher sem me aleijar deste jeito?! Por um acaso também fizestes as galáxias e os buracos negros a partir de costelas?

DEUS: Quem anda à chuva, molha-se, pois não?

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Capítulo 2

DEUS: Pronto. Aí está tua companhia, Adão (Gen 1:27). Que nome pretendes dar a ela?

ADÃO: “Eis aqui agora o osso de meus ossos e a carne da minha carne; ela se chamará Virago, porque do varão foi tomada.”

DEUS: Virago? Ai, que me deu até dor de cabeça. Nada disso: chamá-la-ás de Eva. E vou recolher-me agora, porque a ficar contigo neste tró-ló-ló nunca mais é sábado. Até amanhã!

ADÃO: E o que estaremos nós a fazer na vossa ausência?

DEUS: Eu vos abençoo. Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se mova sobre a terra. (Gen 1:28) Quanto a ti, rapariga…

EVA: Tu tá falando comigo?

ADÃO: Eva! Isto são modos?

DEUS: …, conversaremos quando eu desocupar-me de coisas mais importantes. Não vou poder ficar mais tempo convosco hoje.

EVA: Por mim tá beleza, mas eu tô cheia de fome. Onde tem um lugar aberto a essa hora pra gente tirar a barriga da miséria?

DEUS: Eis que vos tenho dado toda erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento. (Gen 1:29-30) Até amanhã!

EVA: Se a gente pode comer de tudo e é tudo de graça, eu tô dentro… Ué! Pra onde é que ele foi?

ADÃO: Desapareceu no ar! Parece gostar de exibir-se!

EVA: Na boa: qual é a desse cara?

ADÃO: Ele é Deus. Onipotente, onisciente, onipresente, eterno, perfeito e imutável. Foi ele que nos criou e a tudo mais que tu estás a ver. Na verdade ele criou apenas a mim; mas consoante o papel dele de Criador, eu pedi-lhe para criar um outro da minha estirpe.

EVA: Vocês dois são criadores de estirpe?

ADÃO: Não. Eu pedi-lhe para que criasse um outro parecido comigo. Mas pelo que estou a notar, tu és bem diferente…  

EVA: Credo!! Por que esse troço tá apontando pra mim?

ADÃO: Eu realmente não sei por que isto está a agir desta maneira, mas ficou assim depois que tu aparececeste. Antes era diferente; e menor.

EVA: E que porra é essa de querer me chamar de Jivago? Tu acha que eu tenho cara de traveco, seu filho da puta?

ADÃO: Não, rapariga.

EVA: Rapariga é a sua vó!

ADÃO: Eva, acalma-te! O nome era Virago, mas eu não sei de onde eu tirei aquilo. Era como se eu estivesse a ler um script! Muito estranho! Eu, na verdade, penso que tu és muita linda…

EVA: Minino, esse negócio aí tá tremendo grudado no teu corpo. É o vento, será?

ADÃO: Eu cá estou a suspeitar que não seja. Tu não queres ir comigo para ali embaixo daquela árvore?

EVA: Pode ser… Tu me explica o que tá acontecendo, que eu não tô entendendo bulhufas! A gente vai sentar aqui embaixo, nessa grama pontuda? Ai, que susto!! Olha ali no pé de pau! Que bicho feio é esse?

ADÃO: Ah, este cá ainda não tem nome. Deus  mandou- -me nomear todas as criaturas do mundo, mas, até agora, só dei nome para três apenas. Para duas, de facto, desde que ele não aceitou o nome que te dei.

EVA: Não fode! Tu queria me chamar de Jivago!

ADÃO: Era Virago. Mas eu gostava de saber por que tu falas tantos palavrões deste jeito…

EVA: Puta que pariu!, é mesmo; eu já tinha reparado. Mas tu acredita que eu não consigo evitar essa merda? Parece até que foi ele que me criou assim. É como se ele quisesse fazer eu parecer inferior a tu, só pode!

ADÃO: O que estás a dizer?

EVA: “O que estás a dizer”. Tu acha que eu consigo falar desse jeito, todo certinho que nem vocês dois falam? Porra nenhuma! Aí tu já pensou a gente num evento social? O povo todo ouvindo tu com essa fala de criador de estirpe e eu falando feito uma… Rapariga! Ele me chamou de rapariga?  

ADÃO: Não é o que tu estás a pensar. Depois explico-te isto. Mas escuta: Deus está com este assunto de dar-me atribuições, e eu vou requerer teu auxílio. Lembra-te do que te disse sobre nomear todos os bichos do mundo? Quando eu penso que só de insetos há de haver mais de dois milhões de espécies…

EVA: Dois milhões!? Porra!, dois milhões de espécies de inseto é inseto pra caralho!!

ADÃO: Pois não?!

EVA: Mas e esse bicho grosso e comprido aí. Que nome tu vai dar pra ele?

ADÃO: Estava a pensar em Mister Adão… rsrs

EVA: Não, seu convencido! Esse outro aí no chão!

ADÃO: Ah, sim. Que tal serpente?

EVA: É bem melhor do que Jivago, com certeza. Mas, se tu, Adãozinho, me quiser sentadinha do seu lado na grama, vai ter que tirar essa serpente daí.

ADÃO: Pois está arrumado. Eu a ponho aqui neste galho de árvore… Pronto! E agora… 

EVA: Eita que o teu negócio tá me cutucando na coxa…

ADÃO: Tu és muita linda, sabias?

EVA: Muita linda? Ai, para!! rsrsss Vem cá! Que babado era aquele de “frutificai e multiplicai-vos”? Tu entendeu?

ADÃO: Pois tu acreditas que esta foi a única coisa que eu entendi até este ponto? Agora é saber se tu queres que eu te explique a ti.

EVA: Te explique a ti? Teu dicionário tá nervoso, num tá não? rsrsrsrs 

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Capítulo 3

DEUS: Adão! Adão!

ADÃO: Estou cá! Por que não viestes ontem?

DEUS: Porque ontem era o Sétimo Dia da Criação; o dia que eu já reservara para o meu descanso, ora pois!

ADÃO: Mas anteontem vos despedistes com “até amanhã”, então eu achava que…

DEUS: Mas “até amanhã” é o que toda gente diz ao despedir-se; não significa que se venha mesmo a dar-se as caras no outro dia. Mas olha isto: eu te fiz uma túnica de peles, por causa do incómodo da grama.

ADÃO: Mas por que só fizestes a minha?! E isto lembrou- -me que os outros bichos não sentem incómodo com a grama pontuda, nem com o frio da noite, nem com o vento constante que causa desconforto no atrito com a pele. Vós não acharíeis mais conveniente ter-me feito com algum tipo de proteção natural? Talvez uma pele mais resistente como a do búfalo, ou com pelos para me aquecer como a dos ursos?

DEUS: Adão. Sério. Eu te criei com um propósito e não era para ser este de fazer-me listas de coisas a corrigir.

ADÃO: E qual propósito seria?

DEUS: Não é da tua conta, opá! E é isto: vim dizer-te que tu podes comer dos frutos de qualquer árvore, exceto daquela que eu pus bem ali no meio do jardim. Se tu comeres do fruto daquela árvore, tu morrerás. (Gen 2:16-17)

ADÃO: Mas ainda anteontem vós dissestes: 

  Eis que vos tenho dado toda erva que dê semente, que está sobre a face de toda a terra; e toda a árvore, em que há fruto que dê semente, ser-vos-á para mantimento. (Gen 1:29)

ADÃO: Por que só agora vindes com esta exceção??!!

DEUS: Isto também tem um propósito. E também não é da tua conta. Mas eu vou repetir para que tu depois não venhas a dizer que não foste avisado:

  Come de todas as árvores do Paraíso, mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque, em qualquer dia que comeres dele, morrerás. (Gen 2:16-17)

ADÃO: Como fica isto de dizerdes que podíamos comer dos frutos de “todas as árvores”, se deixastes uma árvore venenosa tão acessível no meio do jardim, e só dois dias depois vindes dar este aviso?

DEUS: Como eu já bem notara: tu reclamas demasiado! Sorte que ainda estou eu com paciência para aturar-te. Só não te confias muito nisto. A notícia boa é que hoje eu vou te dar um ajudante.

ADÃO: Ajudante? Alguém para ajudar-me na escolha dos nomes dos mais de dois milhões de espécies de insetos? 

DEUS: Hei de ignorar este teu comentário, para teu próprio bem, percebes? O caso é que não é bom que o homem esteja só. Tu vais cair em sono profundo para eu tirar uma de tuas costelas, e dela fazer uma mulher. (Gen 2:18-22)

ADÃO: Mas vós já fizestes isto anteontem, no Sexto Dia! Não vos lembrais?

  E criou Deus o homem à sua imagem e semelhança; e criou-os homem e mulher. (Gen 1:27)

EVA: Ô, Adão! ADÃÃÃÃÃO!! Chega aqui na moita! O leão tá pegando a leona e ela fica é de quatro, enquanto ele vem por trás!! A gente tava fazendo errado, mané! Deve ser por isso que eu tô com as costas tudo fudida da porra daquela grama do caralho!

DEUS: Mas quem é essa desbocada?!

ADÃO: É a Virago. Digo: a Eva! Vós não aparecestes ontem, então eu e a Eva… nós passamos o dia todo… nos conhecendo… 

EVA: ADÃÃÃ-ÃO!! Vem ver isso! Quem sabe tu descobre o que tu tá fazendo de errado, porque o leão, meu filho, tá pegando a leona já tem mais de quarenta minutos, e eu ainda não ouvi ele pedir pra “dar uma descansadinha” não, tá?

ADÃO: É “leoa”, Eva!! “LEOA”!!! 

DEUS: Ela será eternamente amaldiçoada por isto!

ADÃO: Só por errar o nome de um bicho? E por falar em bicho, nós estamos a viver ao relento, feito bicho. E isto de dormir sob as estrelas pode ser romântico, mas não é nada cómodo, nem saudável. Eu pensava que vós pudésseis criar um tipo de…

DEUS: Estou a me referir a ela ser amaldiçoada por ter fechado os olhos do homem para a inocência, tendo-os aberto para o pecado.

ADÃO: Pecado? O que é pecado?

DEUS: Vós não deveríeis ter feito o que fizestes! Vós me desobedecestes!

ADÃO: Mas não vos lembrais do que dissestes anteontem?

  Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra. (Gen 1:28) 

ADÃO: Vós deixastes a mim sozinho no paraíso com uma mulher nua, com instruções para nos multiplicarmos, e só agora vindes falar de pecado? Pelo que nos tomais então? Havemos de ser bactérias?

DEUS: Tu te revoltaste contra o teu Criador. E não és mais digno de estar na presença dele. Eu te expulso deste paraíso e, de hoje em diante, a terra será maldita por tua causa. Tirarás dela o sustento com trabalhos penosos todos os dias da tua vida. Ela te produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra, de que foste tomado. Porque tu és pó, e em pó te hás de tornar.

ADÃO: Ô, Ééééva! ÉÉÉÉVA!!! Corre aqui que nos desgraçamos!

EVA: Ai, o que foi? Deixa eu respirar, que eu vim numa carreira só! Cara, eu vi uma chimpanzoa fazendo uma coisa muito safada com um chimpanzéu. Tu vai se amarrar…

DEUS: E tu, rapariga…

EVA: Rapariga é a senhora sua avó!

ADÃO: Eva, não piora as coisas. Fica calada.

EVA: E tu tá pensando que porque me comeu agora manda em mim? 

ADÃO: Cala-te, Eva!

EVA: Cala-te o caralho! 

DEUS: …, eu multiplicarei os teus trabalhos, e especialmente os de teus partos; tu darás à luz com dor os teus filhos, e estarás para sempre sob o poder do teu marido; e ele te dominará.

ADÃO: Falei para te calares, não falei?

__________

 

Um mundo quase perfeito

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Se eu estivesse prestes a criar um mundo para os meus filhos, como ele seria? Bem que poderia ser muito parecido com este; mas esqueça os terremotos, vulcões, furacões, tornados, tsunamis, tempestades solares, meteoritos, efeito estufa, secas, pragas, pestes, enchentes, eras glaciais. Num mundo criado de acordo com a minha vontade, essas coisas só existiriam no cinema, onde as pessoas iriam se quisessem ver como seria um mundo sem um ser supremo que as amasse.

Valendo-me da minha perfeição, eu teria criado o ser humano perfeito. E de uma vez só, como, aliás, era o que se achava que Deus tinha feito. Nada de deixar tudo à mercê de um processo evolutivo que levaria bilhões de anos e infestaria seu DNA de erros e mutações sem fim, que teriam como consequência previsível o surgimento de todo tipo de doenças e malformações que só causariam sofrimento desnecessário. Não que haja sofrimentos necessários, mas, talvez, sofrimentos inevitáveis, como o da rejeição de um amor não correspondido, ou o provocado pela ausência de alguém que foi embora ou faleceu. 

No meu mundo as pessoas viveriam trezentos anos, e só morreriam de velhice. Recorrendo aos meus poderes supremos, eu jamais permitiria que ninguém sofresse um acidente, um machucado, um arranhão que fosse. Ninguém se afogaria, ninguém seria atropelado ou assassinado. Todas as pessoas do mundo me conheceriam e saberiam da minha presença, porque eu estaria dentro da mente de cada uma, fazendo com que elas se enxergassem como um todo, como parte de algo infinitamente maior chamado humanidade, vendo a si mesmos em cada um de seus semelhantes.

E se, por algum motivo impensado, uma pessoa levantasse a mão para outra, eu apareceria a tempo de impedir que essa mão baixasse. Quando um carro perdesse os freios, ou um avião perdesse a força das turbinas, eu surgiria do nada para evitar uma catástrofe. E se um vaso despencasse de um prédio, eu o conduziria suavemente até a calçada, ante os olhares agradecidos dos transeuntes, já tão acostumados a me ver apelar para a minha onipresença e onipotência de forma a nunca deixar que nada de mal acontecesse a ninguém. 

Eu não iria interferir no livre-arbítrio da minha criação, exceto se essa prerrogativa fosse usada para ferir ou prejudicar seu semelhante. Mas isso seria uma raríssima exceção. Como eles veriam o outro como a si mesmos, não haveria crimes nem ofensas, nem motivo algum pelo qual matar ou morrer, como diz uma certa canção. Ninguém em sã consciência usaria de seu livre-arbítrio para ferir-se ou prejudicar a si mesmo. E eles teriam suas consciências sãs, porque seria a consciência herdada de seu Criador. Além do mais, eles seriam todos sãos. Nada de câncer, AVC, epilepsia, Alzheimer, cegueira, surdez, loucura, autismo, depressão, gripe, infarto, AIDS, cáries, torcicolo, dor de barriga, bicho-de- -pé.

Abolidos a dor, o sofrimento, as doenças do corpo e da mente, a indiferença e o desamor de cada um por seu semelhante, todos os hospitais, presídios, quartéis, delegacias e manicômios seriam transformados em praças; cada farmácia, numa sorveteria. As pessoas se importariam umas com as outras, e se ajudariam mutuamente como um irmão ajuda outro irmão. E todos cuidariam do planeta e do seu futuro coletivo como quem cuida de um jardim.

Um jardim livre de serpentes, de pecados, e de qualquer maldição. 

pecado

 

Tu, Vós, Ela

— Então…?M.M

— Certamente tu não me puseste a par de todos os detalhes…

— O que dizes?!!

— Por exemplo: a tortura antes da execução…

— Não me refiro a isso! Já não te disse que eu posso te chamar de “tu”, mas que tu tens que me chamar de “vós”?

— Eu nunca consegui conjugar a segunda pessoa do plural. Eles riam de mim na escola, tá legal? Eu sofri bullying. Foi por isso que eu fugi pro deserto.

— E perdeste um tempo preciosíssimo, quando poderias ter estado fazendo o que te mandei lá para fazer. Voltaste em cima das buchas, quase no fim do prazo que te dei. Não é à toa que estou preocupado. Mas, enfim… Saiu tudo conforme planejei?

— É… Pode-se dizer que sim… Tipo… Fiz tudo o que você, digo, o que vós mandais eu fazer.

— “Vós mandais”?

Mandeis?

— “Que vós mandastes”!!!

— Ok… Fiz tudo que vós mandastes eu fazer.

— Foi difícil arranjar os dois discípulos conforme te instruí?

— Dois? Não seriam doze?

— Eu disse “dois”. Dois! Um que te trairia, e o outro que escreveria sobre tua passagem na Terra.

— Uai!, mas só uma pessoa iria escrever sobre mim?

— Mas é claro! Não quero um monte de gente inventando coisas absurdas só para o próprio livro ficar mais interessante do que os dos outros.

— Tá… Pois, nesse caso, se vós permitísseis

— “Permitirdes”.

— Que é isso?

— Infinitivo flexionado.

— Vaaalha! Eu disse o quê?

— Imperfeito do subjuntivo.

— Pois bem. Se vós permitirdes, eu vou dar uma descidinha rápida lá pra consertar isso também.

— Como assim “também”?

— É que vós tenhirdes me dito para…

— “Tínheis”.

— Vós tínheis me dito pra marcar uma data de retorno, confere?

— De fato. Quanto mais eficiente tu tiveres sido, mais rápido poderias voltar.

— Então… Foi o que eu pensei. Acontece que eu não tô muito a fim de voltar, não.

— Ooooo quêêêê??!

— Não quero mesmo. E não é nem tanto pelo que fizeram comigo. Mas é muito quente lá, venta pra… venta demais, o tempo todo entrando areia nos olhos da gente! Se eu tivesse nascido mais pro lado ali da Europa, vá lá… Um clima mais agradável, com neve…

— Chega! Marcaste para quando a tua volta?

— Olha, eu não lembro ao certo porque foi logo no começo, né? Foi uma época de só perambular pelas cidades fazendo acampamento, bebendo vinho e batendo papo. Daí que eu acho que disse que voltaria logo, antes que eles morressem de velhice, eu acho. Mas eu tava pensando que vós… o senhor… Tava pensando que o senhor mesmo podia querer ir em pessoa no meu lugar. Ou em Espírito. Assim… eu fui lá com a maior das boas intenções e eles me detonaram daquele jeito? E como eu não tenho um irmão mais velho, o senhor bem que podia descer lá e dar uma lição neles! Um dilúvio de lava seria uma ideia bem…

— Tu vais voltar, mas com toda a tua glória, com todo o teu exército!

— Exército??! Ooooolha… Agora sim! Se vai ter segurança, tudo bem.

— Mas, primeiro, todo mundo tem que já esperar pelo teu regresso.

— Quanto a isso, sem problemas, porque a mulher de Judas – o outro, meu primo – a mulher dele tava lá quando eu disse que não ia me demorar. A essas alturas, Judeia, Samaria, Galileia e até Roma já estão sabendo. Ô mulherzinha…

— Mas tem que ser toda a Terra. Tu andaste pelo mundo todo fazendo milagres, pois não?

— Como assim “pelo mundo todo”? Ali era lombo de jumento, colega! Não tinha bunda que desse conta! Eu fiz o que deu.

— Eu te falei para andar sobre as águas! Era a isso a que me referia: usar teus poderes para cruzar os oceanos.

— Ah, tá. Eu tinha entendido literalmente. Mas não vos estressardes porque…

— “Não vos estresseis”.

— Não vos estresseis, porque eu volto lá e dou o prazo que vós acheis melhor.

— “Achardes melhor”.

— Tá vendo por que eu fugi pro deserto?

— Voltas lá coisa nenhuma! O que está feito está feito. O que tu queres que pensem de nós? Que somos amadores? Tu não voltarás até que toda a Terra esteja a te esperar.

— Então babou, porque eu dei a entender que voltava tipo… em duas décadas.

— Duas décadas? Em dois mil anos ainda vai estar faltando a Coreia do Norte!

— Sério? Mas a Coreia do Norte que se dane: o resto do mundo vai tá conosco. Digo, convosco! Quer dizer… Na verdade: comigo, né? Porque… Vós saberdes que…

— Que marmota é essa?!

— “Sa-Saibais”? “Sabêsseis”?

— É “sabeis”!! Mas que negócio é esse de que o mundo vai estar “contigo”?

— Sim… Eu tava pensando que, poxa vida… Vós sois – o verbo ser e o “to be” eu sei decorado. Poi bem, vós sois muito duro, muito dramático, muito violento, e eu cheguei lá com isso de paz e amor, de dar a outra face… O pessoal gostou um bocado!

— Mas tu não disseste a eles que as leis do Antigo Testamento estavam revogadas?

— Quer dizer que aquilo de fazer sacrifícios, apedrejar quem trabalha fim de semana, cônjuge infiel, homossexuais, adoradores de outros deuses, filhos desobedientes… Isso tudo deixou de valer?

— Foi o que te mandei dizer.

— Putz! Esqueci geral! E olha que tive um bom motivo pra lembrar. Depois que voltei do deserto, sem ter dado notícias por 18 anos, mamãe me deu uma surra que me deixou de cama. Por pouco uma chinela havaiana não vira o símbolo do cristianismo. E agora? O que a gente faz?

— Saulo. Volta lá e aparece a Saulo de Tarso. Ele difundirá o que tu negligenciaste.

— Saulo? Aquilo é um cangaceiro! Um capitão do mato! Uma carniça! Ele prenderia a própria mãe se visse ela fazer o pelo-sinal.

— Ele vai colaborar.

— Pois eu duvido muito.

— Faz como te digo: surpreende-o num lugar ermo, subjuga-o e enfia isso nele.

— Cruz-credo! Mas enfiar onde? Ah, tá. É autoexplicativo. Deixa comigo.

— Diz-lhe que, se ele não colaborar, isso vai arder como pimenta, e vai aumentar de diâmetro.

— Misericórdia! Quem teve essa ideia, gente? Deixa pra lá. Tudo bem. Mando ele falar o negócio lá que eu esqueci, e também posso dizer que eu só volto daqui a dois mil anos? Ou a gente espera pela Coreia do Norte?

— Não. Deixa isso quieto. Ninguém vai notar. À medida que passarem as gerações, as pessoas continuarão esperando de todo jeito. Preciso de tempo para consertar as coisas que não saíram como planejei.

— Tem mais uma coisa que também não saiu muito conforme o planejado…

— O quê?

— Sabe a Maria Madalena?

— Ahhhrrr!! Maldito Dan Brown!

— Quem é esse?

— Cala-te! Não quero ouvir nem mais um pio sobre esse assunto. Tu vais ficar aqui com a bunda colada nesse trono respondendo preces e cuidando da religião que nasceu da tua morte. Eu vou pensar num meio de evitar um mal maior…

— Mas e a Madal?

— Ouve bem. Tu ficas aí cuidando da tua igreja. Para cada vez que tu pronunciares o nome, ou mesmo para cada vez que tu tiveres pensamentos, quer sejam eles lúbricos ou castos, direcionados àquela desqualificada, tu terás mais uma denominação cristã na Terra para tomares de conta. E só te digo uma coisa: eu não digo é nada. E ainda te digo mais: só te digo isso!

 

Eu sou o fantoche do Diabo

o bem e o mal 

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Dia desses eu fui abordado na porta da minha casa por duas irmãs que tinham invadido a rua com outros frequentadores da sua boca de culto. Como vi que ninguém estava carregando material suficiente para fazer uma fogueira, resisti ao impulso de correr para dentro de casa, e sorri pra elas duas, fingindo ser a pessoa mais doce do mundo. Os outros membros do bando passavam e sorriam pra mim, enquanto pareciam apertar, ainda com mais força, suas Bíblias contra os seus respectivos sovacos.

De repente, surgiu um anjinho do meu lado esquerdo, que é o lado do coração, que é o órgão responsável pelas minhas emoções e pelos meus pensamentos bons. Ele me cochichou dizendo que eu fosse educado e cortês, e tentasse assimilar, no meu coração, a mensagem que elas estavam querendo passar. Ao mesmo tempo, do meu lado direito, que é o lado do meu apêndice, que é o órgão responsável por me lembrar que eu não entendo nada de biologia, apareceu um diabinho rabudo e vermelho que disse: “Detona!”. Dessa vez eu decidi seguir o conselho do anjo, porque a minha psiquiatra me garantiu que essas vozes na minha cabeça só vão me deixar em paz depois que eu me tornar uma pessoa menos belicosa.

Elas começaram até bem: “A gente pode falar com você um minuto?”. Aí eu disse: “Sim”. Uma delas, então, me apresentou um panfleto impresso com algumas sentenças ao lado de quadradinhos [supostamente para alguém marcar com um X] onde eu li rapidamente coisas como a) Deus, b) Homem, c) Mídia, etc. Enquanto segurava o papel na minha frente, ela perguntou: “Você pode me dizer quem controla o mundo?”. Aí eu disse: “Não”. Foi quando ela começou rapidamente a me esclarecer sobre como tudo é extremamente simples: bastaria amar a Deus e ler a Bíblia, que todos os meus problemas e os problemas do mundo se resolveriam; e que todos os meus problemas, bem como os problemas do mundo, eram frutos do pecado.

Pacientemente, eu a ouvi durante quase quarenta segundos; mas aquele diabinho estava agora arranhando meu apêndice com uma serrinha de unha, então eu tive que interrompê-la:

— Me dê um exemplo de pecado.

— Desobedecer as leis de Deus é pecado.

— Me dê um exemplo de pecado.

Minha professora de catecismo me chamou muitas vezes de “impertinente” por bem menos do que isso.

— O marido trair a esposa é um exemplo de pecado.

— E por que você acha que maridos traem as esposas?

— Porque eles cedem às tentações do Diabo.

Aqui o diabinho vermelho parou de lixar o meu apêndice e ficou prestando atenção na conversa.

— Quer dizer que, se eu fosse casado com você e tivesse um caso com a sua irmã aí, isso seria culpa do Diabo?

— Não: seria culpa sua e dela, por cederem à tentação dele. 

— Então a ideia de transar com a sua irmã foi posta na minha cabeça pelo Diabo?

— Foi… — ela disse, disfarçadamente avaliando a distância que se encontrava do resto do grupo, ao longo da rua. 

— Você acreditaria em mim se eu dissesse que, se sua irmã aí fosse bem feia, magrela e tivesse mau hálito, o Diabo poderia fazer o diabo, e mesmo assim eu jamais trairia você com ela?

Elas não quiseram continuar a conversa, por algum motivo. Despediram-se entre apressados conselhos para que eu lesse a Bíblia, e foram se juntar aos outros do bando, que também não deviam entender nada de biologia, a ponto de achar que o desejo que um homem tem de transar com mais de uma mulher é motivado por uma criatura malévola que habita uma dimensão mágica.   

  

 

Perdoa-me, porque pequei

 

mulher-cristã

Eis que você é o motivo de eu estar levemente embriagado, porque eu raramente bebo. E nem é porque tenha alguma intolerância alcoólica, mas sim uma certa aversão a paraísos artificiais. Talvez seja repugnância. Na verdade, repugnância me veio à mente agora só porque lembrei do que senti quando me perdi contemplando a adolescência que você está sepultando por baixo das suas folgadas roupas de crente e dos cabelos longos presos num coque sem graça, enquanto sai por aí abordando pessoas na rua para tentar contagiá-las com a sua doença mental sagrada. Me perdoe se fui rude, mas você devia ter ouvido sua amiga e continuado seu caminho logo depois que mencionei que era ateu e que não tinha tempo: nem para vocês duas nem para nenhuma das três personalidades do seu Deus esquizofrênico.

Como já disse, eu raramente bebo; e também raramente se passa um dia sem que eu me arrependa de alguma coisa. E me arrependi de ter sido grosseiro com você. Me arrependi tanto e imediatamente que, logo depois, parei num barzinho de mesas na calçada, enquanto observava você se afastando magoada, sua saia longa demais escondendo suas pernas finas e coxas magras, certamente cheias de pelos ensebados e fedorentos, porque talvez seu Deus também a proíba de usar sabonete Dove

Como ainda era muito cedo e eu era o primeiro cliente; e como a moça que veio à mesa me atender era infinitamente mais bonita do que você (e devia até usar Dermacyd Neutralize), eu pedi uma cerveja. Quando ela perguntou qual marca eu queria beber, eu pedi pra ela escolher: pra mim todas têm gosto de xixi gelado. Mas não disse isso pra ela, é claro. E também nunca bebi xixi gelado, só pra você saber. Na verdade, eu nunca bebi xixi de jeito nenhum. Enquanto a moça do bar não voltava, eu fiquei pensando em como puxar assunto. Você sabe: não custava nada soltar umas gracinhas e tentar a sorte, afinal, ela era muito bonita mesmo. Não, você não sabe. Você não frequenta barzinhos, muito menos leva cantada.

Mas, aí, meus olhos se voltaram pra você de novo. Era uma rua longa e bem iluminada. Ainda podia ver sua bunda chocha, seus quadris duros e seu cocó de moça de igreja. Mas sua figura longilínea e seu andar suave prenderam minha atenção como a angústia costuma prender o choro. E, de repente, eu desejei ter deixado você ler aquele trecho da Bíblia que você estava marcando tão aflitamente com seu dedinho. Foi quando você se virou na minha direção. E ficou imóvel, me olhando. Eu congelei. O Inferno congelou. Eu te magoei.

No que você estava pensando, ali parada, olhando pra mim? Eu não sei. E também não sei quanto tempo demorou aquilo. O que eu sei foi que a linda garçonete veio e foi embora, me deixando sozinho com uma cantada que perdeu a vontade de existir, e com uma garrafa preta de xixi gelado que eu tomei mais para me punir do que por qualquer outra coisa.

O interessante é que sempre que passo perto de um bar, meus olhos de vampiro aposentado me obrigam a contemplar o eterno desespero da existência humana disfarçado nesse ritual de socialização e acasalamento, em que cada lata de cerveja se destina a resfriar, por algumas poucas horas, o inferno de cada um. Hoje você foi o meu inferno.

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Estou republicando esse texto pra me lembrar de nunca mais magoar ninguém em nome de Deus.

O Estupro Sagrado da Virgem Maria

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Bendito é o fruto do vosso ventre: Jesus!

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O Evangelho de Mateus meio que passa por cima do assunto, sem querer entrar muito em detalhes, o que é bem compreensível, visto a natureza deveras escabrosa do ocorrido. Mas o livro de Lucas, segundo o meu ponto de vista, descreve uma recatada moça de família, virgem e maritalmente comprometida sendo vítima de assédio sexual seguido de estupro.

Na verdade, e a bem da verdade, o termo “estupro” não se ajusta perfeitamente nesse caso específico. É que, tecnicamente falando, o nosso Código Penal não abrange a situação em que o intercurso sexual se dá sem a presença do estuprador, mesmo que, como prova do crime, tenha resultado numa gravidez indesejada, como foi a de Jesus Cristo. Uma vez que o meliante autor do delito estava presente apenas em Espírito, esse crime hediondo escapuliu do devido enquadramento legal, visto que um princípio jurídico determina que nenhum ato pode ser considerado criminoso sem uma lei prévia que o estabeleça como tal.

Explica-se, então, que a atitude divina para com aquela plebeia judia só não pode ser considerada adequadamente um estupro por conta de nossa ferrenha atenção às normas que nós mesmos criamos. Mas se não foi aquilo um estupro, teria sido o quê? Um contato imediato do sexto grau? Para quem não sabe, um CI-VI é aquele em que um humano tem relações sexuais com extraterrestres. (No caso em questão, o E.T. seria Deus; ele “não é terreno”, logo, a terminologia se aplica.)

Assim, por falta de uma nomenclatura vigente; por o caso em apreço não ter se configurado uma conjunção carnal propriamente dita — segundo nossas próprias definições — , eu passarei a adotar uma expressão própria para me referir ao ato da concepção do Salvador, daquele que é a Luz do mundo e sem o qual ninguém chegará ao Pai.

Segundo a Bíblia, embora não esteja lá assim tão claramente posto, Deus assediou sexualmente e violentou de uma forma sobrenatural a Virgem Maria. Um caso clássico, portanto, de “estupro sagrado”.  

E é isso que passo a analisar agora, dando início com a transcrição do B.O., digo, das Escrituras:

E estando Isabel no sexto mês, foi enviado por Deus o anjo Gabriel a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada de um varão chamado José, da casa de Davi, e o nome da virgem era Maria.

Entrando pois o anjo onde ela estava, disse-lhe:

“Deus te salve, cheia de graça! O Senhor é contigo! Bendita és tu entre as mulheres.”

Ela quando o ouviu, turbou-se do seu falar, e discorria pensativa que saudação seria esta. Então o anjo lhe disse:

“Não temas, Maria, pois achaste graça diante de Deus. Eis que conceberás no teu ventre e darás à luz um filho, ao qual porás o nome de Jesus.” (…)

E disse Maria ao anjo:

“Como se fará isso, pois eu não conheço varão?” 

E respondendo, o anjo lhe disse:

“O Espírito Santo descerá sobre ti, e a virtude do Altíssimo te cobrirá da Sua sombra. E por isso mesmo o Santo, que há de nascer de ti, será chamado Filho de Deus.” (…)

Então, disse Maria:

“Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra.”

E o anjo se apartou dela.

(Lucas, 1:26-38)

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CONTINUAÇÃO:

Um estupro versículo a versículo (parte 1)

Um estupro versículo a versículo (parte 2)

Não deixe de ler, também:      A Cobiçada Vagina de Nossa Senhora

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Pai-nosso ateu

Faz o possível para que, no futuro, nunca te culpes
por teres negligenciado a tua vida;
por teres esnobado as tuas manhãs
desperdiçando aquelas horas que pareciam infindáveis,
mas que já estavam contadas.

Faz o possível para que o teu medo de errar não te roube
os teus maiores acertos;
para que a tua mania de sempre fazer
o que os outros querem ou esperam que tu faças
não te prive dos teus melhores momentos.

Faz o possível para que daqui a muitos, muitos anos,
ao olhar para trás e contemplar toda a tua vida,
tu possas vê-la repleta de tentativas e de caminhos trilhados.

E para que quando os anos começarem a pesar…
tu possas ter orgulho deles.
Faz agora tudo o que estiver ao teu alcance
para que os teus olhos possam chorar de saudade dos dias de hoje.
E não de tristeza por tê-los vivido tão pouco.

Valoriza e aproveita bem cada um dos teus dias,
pois tu jamais terás nenhum deles de volta.
                                                                 …

Bom dia ou Bom-dia? [Editado com nota]

[OFF-TOPIC]: Nós cumprimentamos com ou sem o hífen?

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Incluindo o meu maravilhoso Houaiss acima [lê-se uáis”], cuja segunda edição atualizada para a nova ortografia está em curso há quase uma década, os dicionários da língua portuguesa registram o verbete “bom-dia” e dão exemplo do seu emprego geralmente nesses termos: “cumprimentou-o com um bom-dia caloroso”. Nenhum deles, porém, exemplifica o uso assim: “Bom-dia, José!”. Em contrapartida, o Míni Aurélio (e só ele) explica que o cumprimento em si é escrito sem o hífen, dando o seguinte exemplo: “Bom dia, José!”.

Embora a Academia Brasileira de Letras, através do serviço ABL Responde, já tenha se manifestado dizendo que o cumprimento “bom-dia” (assim como “boa-tarde” e “boa-noite”) sempre se escreve com hífen, a gente sabe que o uso consagrou a forma “bom dia”, em desacordo com a definição: 

bom-dia sm 1 cumprimento que se dirige a alguém na parte da manhã;

Tudo bem que “bom-dia” é o substantivo que aparece em frases do tipo “Ela sequer me deu bom-dia”; e, como quase todos os substantivos, tem uma forma diferente no plural: bons-dias. Mas, assim como está definido em todos os dicionários, “bom-dia” também é o cumprimento em si.

Muita gente gabaritada tem defendido a ausência do hífen no cumprimento (conforme consta do Míni Aurélio). Outros, entretanto, e entre tantos, afirmam que a posição a favor de “Bom dia, José!” é tomada com base num raciocínio equivocado: o de que a saudação “bom dia” ― tal como ocorre em “bom apetite” ou “bom fim de semana” ― é a porção final de uma frase parcialmente subentendida: Desejo que você tenha um bom dia, José!”.

Alega-se que o fato de ser possível inverter na frase a ordem de “bom dia” ― “Desejo que você tenha um dia bom, José!” ― invalida a ocorrência da palavra composta “bom-dia”, pois esta não poderia ter alterada a sequência dos termos que a compõem (“dia-bom”). Uma vez que a inversão de “bom dia” é exequível (“dia bom”), prova-se que aquilo que se está considerando não é um vocábulo (“bom-dia”), mas parte de uma frase, longe das garras do hífen, portanto, que é um tracinho que habita apenas o interior das palavras.

Acontece que a D. Maria nunca acordou de manhã pra dizer “Dia bom, José!”. E isso resolve o mistério.

Quando alguém diz “Desejo que você tenha um bom dia” (ou “dia bom”, na ordem direta: subst. + adj.), está se referindo ao dia todo, justamente por causa da palavra “dia”, que é um termo independente na frase, com significado próprio.

O desejo de que “o dia” de uma pessoa seja “bom”, expresso naquela suposta frase parcialmente escondida, não se restringe à parte do dia em que o sol está brilhando; muito menos tem prazo de validade, como é o caso de “bom-dia”, que, depois das 12:00, vira “boa-tarde” obrigatoriamente. Se você der bom-dia às 12:05, provavelmente vai ser corrigido: “É boa-tarde já”.

E outra coisa: quando alguém lhe dá bom-dia, o que você responde?

― Bom-dia!

― Bom-dia!

A valer aquela frase subentendida que endossa a ausência do hífen (Desejo que você tenha um bom dia), a gente deveria esperar que o diálogo abaixo não parecesse tão bizarro:

― Bom dia, José!

― Obrigado.

“Bom-dia” (assim como “boa-tarde” e “boa-noite”) é uma convenção, uma expressão pré-formatada para saudar as pessoas de manhã! E os dicionários registram essa convenção assim: “bom-dia”. Na fala, não faz diferença; mas, na escrita, o cumprimento leva hífen.

Tenham todos um bom dia. 

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Nota:

Dias depois de escrever esse texto, acabei me decidindo por usar a forma “bom dia”, sem hífen, pelos seguintes motivos:

  1. O emprego do hífen na nova ortografia aparenta pender para o princípio de que quanto menos, melhor.
  2. Em consideração à “nota” do Míni Aurélio com o exemplo de emprego da saudação: “Bom dia, José”.
  3. O fato do Houaiss não exemplificar no verbete “bom-dia” o seu emprego como “Bom-dia, José”, o que teria resolvido o assunto de uma vez por todas.
  4. O já consagrado emprego de “bom dia”, na saudação em si — e o uso faz a regra, não o contrário.
  5. A nova ortografia tá bagunçada e não é pouco! Meu Grande Houaiss (2001) registra “bom-senso”; meu Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras (2009) registra “bom-senso”; meu Houaiss com a reforma ortográfica (2009) registra “bom senso”, no verbete “senso” (portanto sem o hífen).

Como eu disse: uma bagunça!! Então, um grande abraço a todos, boa noite e boa sorte!!

 

A NORMAL (parte 1) – Republicação

ateu

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Muito embora o ateísmo ainda não seja considerado uma religião, o ateu crê que Deus não existe e, portanto, ele também manifesta um certo tipo de crença.”

Desde algumas poucas décadas atrás, quando o catolicismo deixou de ser a única cerveja à venda no barzinho das ilusões, e as bocas de culto se tornaram muito mais numerosas nos nossos bairros do que farmácias e padarias juntas, os empresários da fé acharam esse raciocínio perfeito para convencer os dizimistas a continuarem contribuindo, sem precisar dar ouvidos ao que viesse a sair da boca de um ateu, do mesmo modo que não precisavam levar em consideração nenhum discurso de um crente de uma outra igreja. Não é difícil de imaginar por que um evangélico jamais vai aceitar os argumentos de uma testemunha de Jeová, por exemplo, que não casam com suas próprias convicções religiosas. Se a testemunha de Jeová é substituída por um mórmon, um católico ou um ateu, o resultado é o mesmo, e mais ou menos pelo mesmo motivo. Essa é a ideia.

Tal manobra desonesta perpetrada ao longo de tantos anos tinha mesmo que dar frutos. Não por acaso, já preenchi alguns formulários online que, requisitando meus dados pessoais, apresentavam Ateus como opção a se marcar no campo Religião. Quando não vinha nesse formato, eu tinha que escolher Outros, obriga-toriamente, uma vez que a página não aceitava que o campo Religião ficasse em branco. Isso me fazia chancelar o equívoco de que “sim, eu tenho uma religião, mas não está listada aqui”.

Quase sempre eu não tinha a quem reclamar, mas quando recebi uma ficha cadastral semelhante no meu próprio ambiente de trabalho, achei que alguém me devia uma satisfação. Imprimi uma cópia do formulário, à guisa de prova, catei minha edição de luxo de Deus, um delírio, encadernado em capa dura e com a borda de cada página pintada em ouro, e saí pelos corredores, pisando forte e bufando de ódio, pronto para iniciar uma Cruzada.

Olha, eu entendo a sua questão. Mas eu acho que a pessoa que elaborou o formulário entendeu que, se o senhor marcar Ateus no campo Religião, o senhor vai estar deixando subentendido que é porque não tem religião alguma.”

Claro que “a pessoa que elaborou o formulário” poderia muito bem ter substituído Ateus ou Outros por Não tem, sem precisar deixar nada subentendido, afinal, quem fosse ler meu cadastro observaria que, no campo ‘Religião’, eu havia marcado ‘Não tem’. A conclusão me parece bem mais óbvia. O problema é que, certamente, “a pessoa que elaborou o formulário” era uma pessoa religiosa, assim como a moça do RH que me atendeu, bem como o chefe dela, meu próprio chefe e toda a mesa diretora da empresa, então… eu achei melhor voltar pra minha sala sem causar escândalos.

Inevitavelmente, eu me vi filosofando sobre o tema, e tirei algumas conclusões talvez bem originais. O primeiro dado que considerei está representado na frase que abre esse texto e que, sem dúvida, serve perfeitamente para reforçar a blindagem da mente religiosa às investidas da razão. Mas também é um exemplo perfeito de sofisma, uma palavra que tem uma das mais belas definições que se pode encontrar num dicionário: 

sofisma 1. argumento ou raciocínio concebido com o objetivo de produzir a ilusão da verdade, que, embora simule um acordo com as regras da lógica, apresenta, na realidade, uma estrutura interna inconsistente, incorreta e deliberadamente enganosa.

(Houaiss)

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Parte 2   –   Parte 3   –   Parte 4

 

Tema de Natal

“Confia em Deus, mas tranca a tua casa”. A família Clutter confiava muito em Deus, isso era indiscutível. Mas tinha o péssimo hábito de não trancar as portas de casa. Mesmo numa cidadezinha do interior do Kansas, mesmo nos idos de 1959, não trancar as portas de casa era algo discutível sim. Por algum motivo, Deus tem essa estranha tendência estatística de proteger mais a quem toma certas precauções em prol da própria segurança.

Li “A Sangue Frio”, de Truman Capote, e descobri por que ele levou seu autor a se tornar um dos mais famosos escritores americanos. Só depois de lido o livro é que pesquisei o assunto na internet; só depois quis ver as fotos dos assassinos e da cena do crime. Dos crimes. Isso pra não influenciar meu processo de leitura. E só então vi o filme. “Capote”. Sobre como o livro foi feito. Foi então quando entendi por que Truman Capote, depois de ter alcançado a fama que sempre quis, nunca mais publicou outro livro.

É perturbador perceber que vivemos cercados de pessoas e monstros, pois frequentemente não dá pra distinguir uns dos outros.

 

O INDEX

index

Lector, suscipit vitae, quia ultra precipitas inferos, quo tu non somnium vivit. 

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PALAMARIUS 

De olhos bem fechados  

 

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Solum Textus

O post inominável

A divina tragédia

Jesus Cristo se masturbava?

Quando Deus cagava no mato

Teste seus amigos crentes

Teste seus amigos crentes 2

Teste seus amigos crentes 3

Teste seus amigos crentes 4

Que amor mais vagabundo!

Mentes pré-históricas

Cruz: o símbolo macabro do cristianismo

Seus problemas acabaram!

Barros vs. Diabo

Aleluia, Sócrates!!!

A moral de Deus

A moral flutuante de Deus

Barros, a mulher e o jumento

O sacrifício

Cara ou Coroa?

Pai-Nosso Ateu

Efeito borboleta

Eu, prolixo

Obrigado, Senhor!

Deus é negro, cego e toca piano

A chantagem suprema

Deus apareceu pra mim

O Problema do tempo

O universo veio do nada?

No primeiro dia, o Homem criou Deus

Deus… esse sujeito!

Eu escrevo Deus com “D”

Pequeno ensaio sobre o Vazio

Ridículo, com 4 letras

Pra não dizer que não falei das flores

Foi-se o tempo dos milagres!

Deus, ninguém me ama também

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Divisum Textibus:

Eternidade

Sê bem-vindo ao Inferno!

Deus, Alice e a Matrix

Quando os deuses se cansam

O Deus que não estava lá

Nada a ver com Deus

Tratado das ilusões 

As flores do mal

A cobiçada vagina de Nossa Senhora

Fé & Autoengano

Três deuses, um funeral

Deus está nu

O livre-arbítrio

Deus: aprecie com moderação

As Fadas de Barro

A insuportável arrogância do ser

A sociedade torturadora de bebês

Por que não acreditar

DEUS: Manual do Usuário  

O Sexo de Deus

Blasfêmia

Interpretareis conforme a vossa conveniência

Uma história sem final feliz

Espiritismo: sua alma é reciclável

Voo e Queda

O Evangelho segundo o Criador

Aborto: a batalha entre fé, moral e razão

Minha linda coroa de brilhantes 

O imbecilionismo

A Teoria do Barro(s)

As evidências de Deus

As sacolas de Sofia

Brincando de Deus

Deuses de mármore

Qual o sentido da vida?

A Normal

Deus, ninguém me ama também [Republicação]

Eu lembro que, logo no início do filme A Bela e a Fera, o narrador fecha a introdução dada à estória com essa pergunta: “Pois quem seria capaz de amar um monstro?”. Um ótimo começo, porque resume bem o excelente enredo e a moral dessa fábula, uma vez que o bom senso nos leva a pensar que um amor entre uma mocinha linda e uma criatura horripilante seja mesmo impossível. A expectativa, então, é a de que o conto de fadas venha a nos mostrar que estamos errados, e nos surpreenda com um final maravilhosamente inesperado.

Mas o mundo real não é assim tão surpreendente. Não fui eu que fiz essa lei, mas quando uma coisa tem chance de dar errado, ela vai dar errado. Se você quer namorar uma princesa, ajuda mais ser o príncipe do que ser o sapo. E se você é um Deus carente que precisa muito de amor… então é melhor fazer por onde.  

Veja os cristãos, por exemplo: depois de se darem conta de quão monstruoso era o Deus hebraico, resolveram acorrentá-lo às páginas do Antigo Testamento, e lá o esqueceram. Já tendo feito o que lhe cabia — criar o mundo e lançar sobre ele sua maldição — Deus agora é convenientemente usado apenas como ameaça: um pitbull raivoso que eles prometem soltar nas fuças de quem não simpatizar com o deus do Novo Testamento — Jesus Cristo —, em tudo e por tudo diferente do Deus-monstro que eles se viram incapazes de amar. 

Pelo dogma da Santíssima Trindade (em que entra, também, o Espírito Santo, que nem fede nem cheira), admite-se que Deus e Jesus sejam uma e a mesma “pessoa”. Mas isso é só mais outra das incontáveis e embaraçosas contradições da doutrina católica, porque as diferenças não poderiam ser maiores. 

Deus era o deus dos hebreus, o deus do “povo escolhido” (escolhido por ele, Deus); Jesus é o deus de qualquer um que se disponha a trocar demonstrações carnavalescas de amor fingido por um salvo-conduto que o livre do castigo de ser torturado por toda a eternidade (ameaça feita por ele, Jesus). 

Deus cuidava exclusivamente dos hebreus e estava sempre do lado deles nas trincheiras; Jesus não tem nada de belicoso e, aparentemente, não faz distinção étnica.

Deus afogou quase todo mundo na Terra, incitava guerras, matava e mandava matar; Jesus não é afeito a genocídios e sempre foi infinitamente mais diplomático.

Deus criou o universo todo, junto com tudo que há nele; Jesus se contentou em fazer apenas alguns truques de circo.

Mas se o Pai era o Verbo, o Filho do Homem foi o Discurso. E graças a uma conversa mole sobre recompensa em outra vida; graças à ameaça de entregar os dissidentes aos cuidados do Deus do Antigo Testamento, dois mil anos depois, Jesus é o único deus dos cristãos. Eles veneram sua imagem; eles fazem músicas em seu louvor; eles divulgam suas ideias e pregam em seu nome; eles o bajulam; eles recontam suas aventuras para as crianças; eles comemoram o dia do seu aniversário.

De hoje em diante, quando baterem à sua porta nas manhãs de domingo, nos sermões das igrejas, nos shows de horrores dos programas religiosos na tevê; e sempre que vierem falar de “Deus” para você, tente perceber a que deus eles estarão se referindo, a que deus eles estarão dirigindo suas lamúrias, a que deus eles invocam para agradecer e para suplicar, a que deus eles dizem que amam. Eu sou capaz de apostar que será o deus do Novo Testamento.

O outro, o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, permanecerá acorrentado e esquecido na solidão daqueles milênios longínquos, até o fim dos tempos.

Pois quem seria capaz de amar um monstro?

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A ciência salvou minha alma

Foi santo Agostinho quem disse que “a razão destrói a fé”? É incrível como só um pouco de conhecimento é suficiente para tornar qualquer ideia de Deus insignificante, quando não completamente desnecessária.

 

 

Uma história sem final feliz (Pt. 3)

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Até hoje, quantos dias você realmente aproveitou o máximo que pôde? Quanta gente interessante você conheceu? Que lugares inesquecíveis você  visitou? A quantas festas você foi? Quantos amigos você fez? Pra quantas pessoas você disse ‘eu te amo’? Até hoje, quantas histórias incríveis você tem pra contar? Será que alguém iria gostar de ler a sua biografia?

Eu normalmente me comporto como se fosse viver ainda mais 200 anos. E, pior: como se as pessoas que eu amo fossem durar isso tudo também. Mas todos os dias, todas as manhãs, eu me obrigo agora a encarar a verdade. E ela, a verdade, é inescapavelmente clara, inevitavelmente simples, e imutavelmente certa: eu vou viver, no máximo, mais algumas poucas décadas. E vai chegar o dia em que eu vou pensar que talvez não me restem mais do que alguns poucos anos, e, por fim, o dia em que eu vou me dar conta de que terei somente alguns minutos de vida.

Quando esse momento chegar, eu espero ter uma coleção interminável de respostas para aquelas perguntas. Porque, muito provavelmente, isso vai ser a única coisa que irá me confortar quando chegar a minha hora de me despedir de mim mesmo.

Quando você é criança, a morte não faz o menor sentido. Na verdade, ela não lhe diz respeito, nem lhe interessa. É quando você começa a realmente se dar conta do que é viver que a morte se lhe apresenta como uma lembrança inconveniente, como a certeza de que há um ladrão à espreita no quintal, esperando você sair para roubar a casa.

Dentre todos os danos que as religiões nos causam — como indivíduos, como sociedades e como espécie —, o maior deles é, sem dúvida, o de instilar nos nossos cérebros a ideia infantil de que vamos viver para sempre.

Não, queridos, não nessa vida! Porque aqui você já sabe como a história termina, e nunca tem um final feliz. Aqui você sempre morre. Nós estamos falando de um outro mundo; na verdade, de uma outra dimensão. Um lugar mágico onde essas regras daqui não se aplicam; onde o tempo não existe, e coisas que detestamos, como sofrimento, tristeza e morte, não fazem o menor sentido. Lá tudo é perfeito, bonito, alegre e… o melhor: lá é tudo Prá-Sem-Prê! O quê? Como que eu sei disso? Ora, está tudo aqui nesse livro.

A atitude correta aqui seria sugerir que uma pessoa assim fosse submetida a algum tipo de tratamento psiquiátrico. Mas não… Você compra a ideia. Você se deixa levar pelo fascínio doentio que esse pensamento infundado desperta, e não só aceita a fantasia como se esforça para divulgá-la, para que ela se espalhe como um vírus, contamine a todo mundo e ninguém venha lhe dizer, depois, que você está se enganando. Porque é justamente isso o que você quer: se enganar; acreditar que a sua história não vai acabar como parece que vai.

É o pensamento que sempre nos vem à mente para espantar essa sensação de estarmos sendo cercados aos poucos: você ouve que algum parente distante morreu; depois morrem seus avós, seus tios, seus pais, seus irmãos. Você percebe algo vindo na sua direção, a passos lentos, talvez; mas inexoravelmente constantes. De repente você se dá conta de que não há para onde fugir; que não há como escapar ao mesmo destino que os outros já tiveram. Com você não vai ser diferente. E é nesse ponto que entra a religião, para te vender uma ideia mentirosa, mas que te traz um benefício absurdo: viver essa vida imaginando que não será a última. E vendo na morte um novo começo, não o fim da sua história.

Porque todo mundo espera que uma história tenha sempre um final feliz.

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Uma história sem final feliz (Pt. 2)

olhos

O primeiro e-mail que ela me mandou tinha a data de 25/12/2010. Nele, ela me parabenizava pela minha série de textos Nada a ver com Deus, que ela tinha acabado de ler naquele dia. Foi um e-mail longo e bem escrito, em que ela dizia que tinha encontrado, no meu blog, algumas respostas às perguntas que nunca teve coragem de se fazer sobre Deus. E terminava dizendo ter recebido o link para aquele texto de uma “amiga do trabalho”. 

Eu respondi o e-mail dela com um outro ainda mais longo, agradecendo pelo carinho e pela atenção que ela teve para com esse escritor frustrado, e também por todos os elogios que ela me fez e que, certamente, eu não merecia.

Foi assim que começou. Ela me mandou um e-mail. E eu respondi. Não deveria ser novidade pra ninguém que certas pequenas coisas que fazemos (ou que deixamos de fazer) podem, sim, ter consequências que não nos seria possível sequer imaginar; às vezes muito boas, às vezes muito ruins. Ainda não consigo classificar em qual dessas categorias ela, enfim, veio a se enquadrar, após esse nosso primeiro&último encontro.

Para não correr o risco de transformar esse penoso relato num romance mal escrito e mal intencionado, eu preciso comprimir os acontecimentos em pacotes, por sua vez espremidos em frases, cuja única função é servir de apoio para as entrelinhas, que é onde a história vai ser contada.

Os e-mails. Foram muitos. Às vezes três num único dia. Cada vez mais longos, mais íntimos (sem conotação sexual), mais dependentes de uma resposta. E em nenhum deles ela me revelava quem realmente era. No começo, mentiu dizendo-se casada. Depois, confessou que não queria se envolver além da conta comigo; por isso “essa reserva”: queria ter sempre em mente que era ela quem tinha o controle da situação, e, caso quisesse parar “aquilo”, não iria depender da minha permissão. Ela perguntou se eu topava, e eu topei. Alguma coisa me dizia que “aquilo” não iria parar ali. E realmente não parou.

Quando passamos a conversar online, câmeras não eram permitidas. A essa altura, eu já  era uma espécie de confidente, de amigo virtual, de sei lá o quê, mas eu me tornei muito importante pra ela, a ponto de, cinco meses depois daquele primeiro e-mail, ela me dar o número do seu celular, mesmo ainda morrendo de medo de que eu “reconhecesse a voz”, como me confessou durante nosso encontro em São Paulo. Mas não reconheci, porque quase não assisto tevê, e a última coisa que veria na televisão seria uma novela. Mesmo assim, ela só fez umas duas ou três, e nunca foi protagonista.

Depois que eu passei a ouvir sua voz, sua risada, sua respiração, eu me apaixonei de vez. E deve ter acontecido o mesmo com ela, porque, a partir daí, eu me tornei seu amante, se você não levar em conta o fato de que não podia vê-la, nem tocá-la. Mas paixão é uma droga, e para quem está drogado, esse tipo de “deficiência”, de “falha do processo”, é um detalhe perfeitamente esquecível.

Foram dois chips da Vivo que nos possibilitaram cometer essa imprudência — ou, antes, essa imbecilidade — de nos esquecermos, durante quatro longos meses, de que os momentos juntos que passamos com as orelhas espremidas contra o celular não eram em nada diferentes daqueles que o viciado passa ao lado de sua seringa vazia, enquanto desfruta de um breve instante de felicidade indizível, que ele jamais poderia encontrar no mundo real à sua volta.

A nossa felicidade era intensa, mas também era uma farsa. Para nós, entretanto, ela era tão real e tão prazerosa que nos viciamos nela. Nós nos desprendemos completamente da realidade e nos recusamos a aceitar o óbvio: que tudo aquilo era apenas uma ilusão que construímos dentro das nossas próprias cabeças, uma fantasia que só se sustentava durante uns poucos minutos, e que nos deixava tão intoxicados de amor, desejo e tesão um pelo outro, que passamos a viver dependendo dessa droga, ao custo de vinte e cinco centavos a picada.

Foi ela quem sugeriu o encontro. Estava “desesperada” pra me ver, segundo ela mesma me disse. Em dezembro próximo já iríamos completar um ano de “relacionamento”. Eu fui. Viajei para São Paulo e me hospedei no motel mesmo em que marcamos de nos encontrar. Liguei pra ela de lá, na noite anterior. Ela estava tão excitada que quis fazer amor virtual na véspera do encontro. Eu disse não. Já estava cansado daquilo. E, dando tudo certo, no dia seguinte eu a teria nos meus braços para fazer amor de verdade. Finalmente.

A vida é uma comédia. E nós somos, às vezes, uns palhaços mesmo. Eu deveria ter aproveitado o momento — e a proposta — e ter feito amor com ela por telefone. Porque seria a nossa última vez. Mas eu não tinha como saber que, no outro dia, logo depois de me ver, ela iria se curar dessa doença chamada paixão.

Eu estava esperando encontrar uma moça comum, de beleza comum, com uma vida comum. Ela estava esperando encontrar o quê? Um príncipe? Quando abri aquela porta de motel pra deixar ela entrar na suíte Mil e Uma Noites, a moça comum, de beleza comum, que achei que ela fosse não estava lá. Essa surpresa me fez arregalar os olhos o máximo que eu podia, mesmo sem acreditar em nada do que eles viam. E meu próprio rosto era como um espelho refletindo o espanto no rosto dela. Mas o que em mim era deslumbramento, nela era só decepção, porque, no lugar do príncipe que ela esperava, a vida também tinha lhe enviado uma outra pessoa.

Eu..