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Chamava-se Margarida. Era natural de Itabuna, Bahia; loira, muito bonita, e ganhava a vida como prostituta. Isso é tudo o que eu sei sobre a minha mãe.
Desde que me entendo por gente, sempre soube da história. Pelo menos do modo como ela me chegou aos ouvidos.
Minha mãe, já comigo na barriga, embarcou na boleia do caminhão do meu “pai adotivo”, para ir morar com ele na cidade de Castanhal, no Pará. Como meu “pai” vivia viajando, depois que eu nasci minha mãe também não parava em casa (certamente ganhando seu próprio dinheiro com seu ofício) e, mui provavelmente, quem tomava conta de mim era a minha “avó”, D. Rosa.
Por conta de desentendimentos entre a minha mãe e a minha “avó”, que era viúva e morava na casa de meu “pai” também, D. Rosa, um belo dia, quando só estávamos os dois em casa, arrumou as trouxas e me levou no colo até a BR, onde fomos de carona até Belém. Lá ela pegou um ônibus até Sobral, no Ceará, de onde seguimos para Coreaú, uma cidadezinha minúscula onde moravam alguns dos seus parentes mais próximos.
Eu devia ter, então, uns 2 anos de idade e havia sido raptado. Mas eram os últimos anos da década de 70 e, ao que parece, a coisa ficou por isso mesmo.
Nós fomos morar na casa de um irmão da minha “avó”, que era um tipo de açougue: uma vendinha malcheirosa com peças de carne espalhadas por todo canto, penduradas em ganchos no teto e em cima de uma bancada de mármore repleta de moscas. Dizem que minha “avó” foi solicitada a ajudar na venda, ou nas tarefas da casa, que eram muitas, visto que, contando com nós dois, éramos oito pessoas dividindo uma casa de seis cômodos, e era preciso cuidar da venda, da casa e das crianças; eu incluso.
Minha “avó” não quis fazer nem uma coisa nem outra e, menos de um ano depois, voltou para Castanhal, com um peso a menos na bagagem: eu.
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Morei na casa do açougue até os meus nove anos. Muito cedo fui engajado nos serviços domésticos e, quando já mais grandinho, o açougueiro encontrou em mim uma excelente serventia: ele me mandava ir até a casa da dona fulana saber se ela iria querer carne para o almoço; eu ia correndo, perguntava, e voltava correndo. Se a freguesa fazia o seu pedido, eu levava a encomenda e trazia o dinheiro. Quando o serviço de entregas findava, eu tinha a incumbência de ficar no açougue ajudando o homem e, no fim do dia, cabia a mim limpar a venda.
Passei a minha infância trabalhando como um escravo, mas embora levasse umas palmadas às vezes, não lembro de ter sofrido violência física. Pelo menos até quando o açougueiro descobriu que a sua filha mais velha estava me usando para um sem-número de brincadeirinhas sexuais. E ele só descobriu porque a segunda mais velha deu com a língua nos dentes, provavelmente porque a outra não queria que ela participasse dos folguedos… Levei a maior surra da minha vida. O homem só parou de me bater quando estava já sem forças. Sorte minha que era um gordo velho e asmático.
Depois disso, minha presença na casa ficou impossível. O homem queria me jogar na rua, sem eira nem beira, e a mulher queria que eu fosse levado de volta para a casa do meu “pai adotivo”, no Pará. Como não havia quem pudesse me levar, muito menos dinheiro disponível para a empreita, acabaram me despachando para ir morar com uma parenta da mulher do açougueiro, que era amigada com um pedreiro e morava numa casinha de dois cômodos no meio do nada. Como também não havia nada para fazer, a minha nova “mãe” resolveu me ensinar a ler e a escrever para passar o tempo. Ela conseguiu me alfabetizar antes que eu completasse onze anos e me deu o primeiro livro que li na vida: O Príncipe, de Maquiavel.
Mas logo estavam os dois discutindo o que fazer comigo, pois o pedreiro havia resolvido ir tentar a vida em São Paulo. Ele queria levar minha tutora junto, mas sem o pupilo. Acabou por se resolver que, no caminho para o sul do país, eles me deixariam com a mãe dela, na cidadezinha de Pacatuba, região metropolitana de Fortaleza, no Ceará.
Antes de fazer doze anos, numa noite de chuva forte, fui entregue aos cuidados de uma quarta família: a mãe da minha antiga tutora, seus dois filhos com suas respectivas esposas, e sua neta, filha de um dos casais, uma moreninha linda, uns dois anos mais velha do que eu, com cabelos castanhos longos que se desmanchavam em ondas cintilantes pelas suas costas e pelos seus seios voluptuosamente precoces de menina-moça.
Naquela primeira noite na minha nova casa, lembro de ter sentado na minha rede antes de dormir e de ter agradecido longa e fervorosamente a Deus, não pela sorte de ter encontrado um novo lar, mas por minha antiga tutora não ter tido tempo de contar para a minha nova família o episódio ocorrido com a filha do açougueiro, o motivo de eu ter estado sob a sua guarda.
Lembro da certeza que tinha de que Deus havia ouvido os meus sussurros por entre os trovões que ribombavam nos céus acima, e lembro de que fiz o sinal da cruz sorrindo, enquanto me acomodava na minha rede armada a menos de um metro da entrada do quarto sem porta da minha doce e linda Hortência.
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Hydrangea macrophylla (Hortênsia)
Os trabalhos braçais a que sempre fui submetido desde pequeno me garantiram uma compleição física acima da média para a minha idade e, como já disse, minha mãe era uma mulher bem bonita e acho que herdei um pouco dos seus traços. Se por isso ou porque ela nunca havia tido por perto nenhum rapazinho loiro de olhos verdes tão afoito, eu nunca vou saber, mas Hortência se entregou a mim em menos de uma semana. Conhecemos o sexo um com o outro numa madrugada friorenta, na terceira ou quarta vez em que, sorrateiramente, eu deslizei da minha rede para dentro do seu quarto desprotegido. E ela precisou sufocar a dor da despedida da sua inocência em lençóis de retalho que cheiravam a sabão em barra.
Durante o dia, mal nos víamos e sequer nos falávamos, mas à noite, eu tinha sempre a oportunidade de deslumbrá-la com os truques que a filha do açougueiro havia me ensinado. Ela passava as manhãs na escola e as tardes na casa de uma tia, mais para o centro da pequena cidade. Voltava no começo da noite, de carona com o pai, e fingia que eu nem existia. Mas quando eu a despertava nas madrugadas, ela me abraçava em silêncio e me beijava longamente.
Nossos encontros clandestinos eram perigosamente ameaçados por qualquer barulho que houvesse, dentro ou fora da casa. Se ela, alguma vez, disse que me amava ou que gostava de mim enquanto eu a tinha em meus braços, eu nunca ouvi. Seus sussurros eram sempre mais fracos que o vento de inverno que soprava forte por entre as telhas da casa, ou eram abafados pelo pulsar violento do sangue nas minhas têmporas.
E assim se passavam os dias e eles eram sempre os mesmos: uma luta constante contra o sono e uma ânsia desesperada para que o sol logo sumisse no horizonte. As noites, por sua vez, nunca eram iguais. Às vezes a família estava muito estressada fosse com o que fosse, e as pessoas acordavam com frequência para tomar água, ou ir ao banheiro, ou mesmo para conversar de madrugada fumando cigarros intermináveis. Às vezes Hortência passava quase uma semana menstruada e não me deixava chegar perto. E as noites de lua cheia eram proibidas para nós, porque o interior da casa ficava por demais iluminado, e a consumação do nosso delito carecia do manto perfumado das trevas. Não fossem esses intervalos, eu provavelmente a teria engravidado e as coisas teriam sido diferentes. Pra pior, com certeza.
Desnecessário dizer que eu me apaixonei. Desnecessário dizer, também, que eu não sabia nada da vida; muito menos de mulheres.
Uns seis meses depois da minha chegada, a avó de Hortência, D. Dália, achou que minha ajuda nos serviços da casa e na lida com os animais era um luxo que ela podia dispensar, e me conseguiu um emprego com um vizinho dono de uma leiteria. Eu iria limpar o curral das vacas, todos os dias, e vender o esterco na cidade.
Não sei por que, mas não me pareceu a pior coisa do mundo à primeira vista. Mas quando, por acaso, passando pela rua do colégio dela, Hortência me viu empurrando meu carrinho carregado de bosta, a noção do mundo em que eu vivia desmoronou sobre mim, como um prédio desmorona ao ser implodido.
Enquanto eu passava na frente da escola, dificultosamente desencalhando o carro de estrume do atoleiro da rua de barro, vi e ouvi as garotas rindo alto enquanto me encaravam. Apesar de me acompanhar com os olhos surpresos enquanto eu desfilava a minha indigência à sua frente, percebi que Hortência não ria com as outras, nem tinha a menor expressão que denunciasse que pretendia fazê-lo.
Seu rosto era pura decepção. Ou vergonha. Ou as duas coisas juntas.
Era semana de lua cheia. Na lua nova seguinte, eu ouvi, pela primeira e última vez, a voz dela se elevar acima do vento que zunia por sob as telhas do quarto escuro. Ela disse apenas um “Sai daqui”, como se falasse a um cachorro, e nunca mais permitiu que eu a tocasse de novo.
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Dahlia pinnata
Tudo bem, paremos por aqui. Essa biografia é falsa.
Por que eu estaria escrevendo uma relato fictício sobre a minha própria vida? Ah, essa resposta só eu tenho. Já dizia o poeta que “até nas flores se nota a diferença de sorte: umas enfeitam a vida, outras enfeitam a morte”. Mas como há o jardineiro que não conhece o destino de suas flores, também há o que as cultiva para um determinado fim.
Ainda que eu continuasse com a farsa e postasse toda a minha “biografia” aqui no site, não é difícil de imaginar que, se fosse do interesse de alguém, eu poderia ser desmascarado fácil, fácil. Um detetivezinho de subúrbio não passaria mais do que uma semana pesquisando meus rastros, reais e virtuais, até achar, pelo menos, algum documento meu que contivesse minha filiação, ou encontrasse um conhecido, um parente, um colega de trabalho, que pudesse, enfim, dizer-lhe que minha vida não tem nada a ver com essa história. Isso sem contar que ele não precisaria fuçar muito se tivesse escolhido investigar aqui mesmo no blog, uma vez que três ou quatro leitores já perceberam o embuste.
Agora, imagine que o Barros, com tempo e alguns rolos de pergaminho de sobra, tivesse tido a mesma ideia uns dois milênios atrás. Eu iria mostrar meus escritos a uma meia dúzia de pessoas (era uma época em que apenas uns poucos sabiam ler e escrever) e só. A brincadeira parava por aí. Entretanto, meus pergaminhos iriam, certamente, sobreviver a mim e seriam guardados com carinho, visto que toda produção literária naqueles tempos era um luxo, um sinal de status, e dali a pouco, numa sociedade em que a expectativa de vida era de três décadas e as pessoas sequer tinham sobrenome, tudo o que o mundo teria sobre mim seria justamente o que eu mesmo escrevi.
Algum leitor que tomasse meus textos para ler, nos séculos seguintes, não teria a quem recorrer, nem ao que recorrer, para se certificar se o que estava ali escrito seria ou não a verdade sobre o autor. Se ninguém mais havia escrito sobre o Barros, aquele leitor chegaria à conclusão de que o Barros teria sido uma figura bem comum de sua sociedade, sem absolutamente nada de extraordinário, e que teria que se conformar com a única coisa que havia sobrevivido a ele: sua autobiografia.
“ — Ora, por que uma pessoa deixaria para a posteridade uma história fictícia sobre sua própria vida? O mais provável é que esse Barros tenha relatado fielmente o que lhe aconteceu nos seus tristes dias sobre a terra…”
E a partir daí, se, por acaso, eu ganhasse a fama que nunca havia tido, tudo o que se escreveria sobre mim seria baseado naquele texto inicial, que só eu e os defuntos que me conheceram em vida sabiam se tratar de uma história inventada.
Quando um crente rechear seus argumentos e exaltar sua própria moral duvidosa com versículos de uns certos textos escritos há vinte séculos, tente pensar nas minhas Flores do Mal, uma história que eu criei e na qual você se veria tentado a acreditar se a tivesse lido 2 mil anos após a minha morte. Acho que essa lembrança vai te inspirar a conduzir a discussão. E, sobre os Evangelhos, vale a pena dar uma lida nessa tradução que fiz, em que uma avaliação minuciosa revela que os seus autores eram apenas dois, e que não viveram na mesma época de Jesus.
Será que o que esses dois escreveram era a descrição fiel da realidade que foi presenciada por terceiros? Ou será que poderia ser apenas um história inventada com intenções que supomos, mas não podemos provar?
O resultado do trabalho deles está aí nas ruas, em cada esquina. Mas não se esqueça de lembrar a todos quantos puder: não há nada que não nos permita pensar que tudo isso não passa de uma grande mentira.
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Publicado originalmente Aqui, em março de 2010, em quatro partes.
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Quando publicou, em 1857, As Flores do Mal (Lês fleurs du mal), o poeta francês Charles Baudelaire fincou o marco a partir do qual se estabelecia a poesia moderna e simbolista. Entretanto, sua obra-prima escandalizou a sociedade parisiense de então, despertou hostilidades na imprensa e foi considerada imoral, sendo, por fim, proibida de circular.
As Flores do Mal reuniam uma série de temas de toda a obra do poeta: a queda, a expulsão do Paraíso, o amor, o erotismo, a decadência, a morte, o tempo, o exílio e o tédio. A primeira edição era constituída por 1300 exemplares em papel Angoulème e 10 em papel Vergé. Os editores tinham guardados 200 exemplares da obra original e, para não terem que destruir os livros, condenados em sentença judicial, limitaram-se a destacar todos os poemas proibidos de todos os volumes. Nasciam assim os “exemplares amputados”, que valem uma fortuna atualmente.
Em 1992, As Flores do Mal foi, pela primeira vez, publicado com texto integral.
Neste livro atroz, pus todo o meu pensamento, todo o meu coração, toda a minha religião (travestida), todo o meu ódio.”
(Baudelaire)
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