Preciso contar uma coisa: eu tenho US$ 980.620,00 guardados dentro de uma mala embaixo da minha cama. Sim, você leu direito: quase um milhão de dólares americanos. Em notas usadas de 50 e de 20.
Você pode não acreditar em mim, mas isso poderia ser facilmente resolvido se eu levasse você até a minha casa para que você mesmo visse a mala e contasse o dinheiro. Mas mesmo que eu não faça isso, você não poderá simplesmente concluir que essa mala de dinheiro não existe. O fato de eu, especificamente ― claro, se fosse o Sílvio Santos que alegasse tal coisa, você não teria por que duvidar ― , ter esse dinheiro todo no meu quarto não pode ser visto como “impossível”, afinal, eu poderia tê-lo obtido de um jeito ou de outro. Mas como isso não vai alterar absolutamente em nada o curso da sua vida, acreditar, ou não, na minha pequena fortuna torna-se totalmente inútil para você, e o seu cérebro simplesmente deixa de pensar no assunto. A minha mala, exista ou não, não lhe interessa.
Mas imagine agora que eu (que moro há anos longe da minha família e, muito raramente, meus parentes menos próximos têm qualquer notícia a meu respeito) mandasse uma carta para alguns deles começando exatamente como acima e, adicionalmente, divulgasse a informação de que eu havia me convertido ao budismo e, antes de me mandar, definitivamente, para o Tibet, no fim do ano, iria querer fazer uma doação de todos os meus bens, distribuindo-os entre os parentes menos afortunados. A grana da mala inclusa.
A história agora é bem outra. A existência da mala pode, sim, interferir na vida de alguém. Numa situação dessas, não é difícil de se imaginar que alguns dos meus parentes iriam considerar bastante o caso, ponderar as possibilidades e, após algumas conversas em família, reflexões, e duas ou três noites de insônia, iriam acabar admitindo um certo nível de “crença” na mala de dinheiro do Barros. Claro, sempre haveria aqueles que iriam duvidar que eu possuísse esse quase milhão de dólares, mas mesmo estes “descrentes”, estariam sempre reavaliando as possibilidades para manter ou reforçar a sua própria descrença. Só que eles, do mesmo modo que os meus “crentes”, não teriam como saber se a mala realmente existe ou não, o que faz dessa descrença ― acreditar que ela “não existe” ― também uma forma de fé, idêntica à dos crédulos, só que com o sinal invertido.
Com o passar dos meses, eu poderia continuar mandando mais cartas para a minha parentada explicando como consegui acumular aquela estupenda quantia, confirmando a minha conversão ao budismo, ratificando a minha decisão de doar todos os meus bens, etc., e até estipulando algumas regras para a divisão dos dólares, que, se não fossem seguidas à risca, impossibilitaria o pecador, digo, o faltoso, de receber a sua recompensa monetária. As cartas seriam tantas e reforçariam de tal modo a ideia inicial do milhão de dólares, que eles as encadernariam luxuosamente e passariam a venerar, mui respeitosamente, o volume assim obtido como se fosse um livro sagrado, onde constaria tudo sobre a origem do dinheiro, sobre a minha motivação para me desfazer dos meus bens, e o passo a passo que garantiria a salvação (ups!), uma parte do montante, melhor dizendo.
Mas ora, assim como a própria mala, ninguém teria como saber se essas declarações seriam verdadeiras ou não: eu poderia estar, descaradamente, mentindo. Seria necessário, então, para acreditar nessa Bíblia em que se transformaram as minhas cartas, o mesmo tipo de fé que eles já haviam dispensado, inicialmente, à ideia do dinheiro em si. Sem se dar conta de que não tiveram nenhum decréscimo nas suas dúvidas sobre a existência da mala, eles passam a depender ainda de mais fé para continuar acreditando nela.
E as coisas poderiam continuar assim, talvez não indefinidamente, mas por um certo tempo, até bem além da data inicialmente prometida para a partilha. Bastaria dizer que resolvi adiar a viagem para o Tibet, ou anunciar a minha intenção de só fazer a distribuição do dinheiro quando atingisse US$ 1.000.000,00 “fechado”.
Essa mudança de planos, com certeza, iria reforçar o ânimo dos “descrentes”, pois lhes daria, de bandeja, um argumento mais contundente contra a existência da mala. Mas, então, por esse tempo, muitos dos que acreditaram, desde o início, na história toda, já estariam tão ligados a ela, já estariam tão esperançosos para receberem o seu quinhão, já tendo até mesmo cometido alguns pequenos excessos de consumo antecipado e contraído algumas dívidas, enfim, já seriam tão fervorosamente devotos da mala, que o pensamento de tudo ser um embuste, uma pegadinha de um parente distante, seria convenientemente descartado.
Quanto mais debilitado financeiramente meu parente estivesse, maior seria o seu desejo de que a tal mala realmente existisse, e esse desejo se tornaria tão grande que ele não iria querer abandonar essa possibilidade. A simples alusão, feita por um parente menos convencido, de que a mala do Barros fosse uma invenção absurda já seria motivo suficiente para um bom bate-boca.
Para os crentes na mala, a dificuldade financeira faria crescer um desejo muito forte de que ela fosse mesmo real. E quanto mais o tempo passasse, mais esse desejo seria cultivado, mais seria regado com sonhos de uma vida um pouco melhor, e, consequentemente, mais difícil seria a ideia de ter que se desfazer dessa perspectiva.
Quando se trata de Deus, não é diferente. Acreditar que existe um Deus todo-poderoso, que ouve suas preces, que o protege de perigos, e que criou um paraíso pra onde ele irá depois que morrer ― isso como uma espécie de bônus, pois só o fato de haver “algum lugar para onde ir depois de morrer” já seria suficiente ― traz grandes benefícios para o crente: sociais, psicológicos, físicos e, muitas vezes, financeiros (se bem que este é mais frequente entre os pastores do que entre as ovelhas). Acreditar nisso lhe faz tanto bem, é tão reconfortante e lhe traz tantas vantagens que ele veria como um grande prejuízo o fato de ”deixar de acreditar”, a tal ponto de:
1. dar prioridade, no nível social, aos relacionamentos e ao convívio com pessoas que compartilhem sua fé;
2. consumir produtos especialmente “desenhados” para ele: músicas religiosas, livros religiosos, filmes religiosos, programas de tv, etc.;
3. aceitar tão somente as informações que venham reforçar sua crença;
4. rejeitar consciente e inconscientemente qualquer coisa que venha de encontro às suas convicções religiosas;
5. permitir que outras pessoas que ele humildemente julga mais fortemente “conectadas” com Deus decidam por ele como ele deve viver a sua própria vida; e
6. aceitar, sem contestação, coisas que não entende, mas pelas quais seria capaz de morrer. [Ou matar.]
O crente, portanto, está imerso num processo autoalimentador da fé, engenhosamente montado e mantido para protegê-lo das investidas da razão.
Entretanto, como no caso da mala de dinheiro, o outro lado da moeda seria o “descrente”, aquele que “acredita” que Deus não existe. E era justamente aqui aonde eu queria chegar: essa qualidade não pode ser atribuída aos ateus. Nós não temos fé com sinal invertido. Nós não cogitamos a possibilidade de Deus ser real, assim como ninguém cogitaria a possibilidade de ser real eu guardar embaixo da minha cama um sextilhão de dólares. Um milhão você até poderia ter dúvidas; mas um sextilhão…
Não é questão de acreditar ou não: é apenas uma ideia absurdamente implausível demais que não merece sequer a dúvida educada das possibilidades.
Ser ateu é compreender que não existe um sextilhão de dólares.
O preço que pagamos por isso é o de termos que encarar a vida sem os benefícios sociais e bálsamos que a fé e o seu compartilhamento proporcionam. A vantagem é a de estarmos vivendo no mundo real, acordados, com a certeza de que esta é a única vida que teremos; o que a torna, por isso mesmo, ainda mais valiosa.
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